Uma 'viagem' internacional: especialistas do mundo todo avaliam os psicodélicos

Michael Vlessides (com colaboração de Medscape Professional Network)

Notificação

23 de abril de 2021

Em 1967, quando a United Nations Convention on Drugs classificou as substâncias psicodélicas como substâncias do Schedule I, a organização acabou a possibilidade de pesquisas com estas substâncias como possíveis tratamentos para os transtornos psiquiátricos.

Os psicodélicos induzem alteração da percepção. Ligam-se ao receptor 5-hidroxitriptamina 2A (5-HT2A) e são a psilocibina, derivada dos "cogumelos alucinógenos"; a N,N-dimetiltriptamina (DMT), componente da ayahuasca e da mescalina (peiote); e a substância sintética dietilamida do ácido D-lisérgico (LSD, do alemão LysergSäureDiethylamid). Outras substâncias, como a quetamina e a 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA), também conhecida como ecstasy, também são algumas vezes consideradas psicodélicas.

Antes de serem classificados como substâncias do Schedule I, os psicodélicos mostraram-se particularmente benéficos para os pacientes com doença refratária, como nos casos de depressão e transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), especialmente quando administrados em um ambiente de suporte terapêutico.

Agora, após um hiato de quase 50 anos, há um interesse renovado em todo o mundo na pesquisa científica dos psicodélicos. A atenção foi estimulada em parte pelos vários estudos exploratórios da DMT em humanos, conduzidos na década de 1990 pelo médico Dr. Rick Strassman e seus colaboradores da University of New Mexico School of Medicine, nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, o médico Dr. Franz X. Vollenweider e seus colaboradores da Universität Zürich, na Suíça, começaram a pesquisar a psilocibina e seus efeitos sobre o comportamento humano. No entanto, o estudo de 2006 com psilocibina, feito por uma equipe de pesquisadores da Johns Hopkins University, nos EUA, é o mais citado como catalisador do atual renascimento da pesquisa sobre psicodélicos.

Para trazer uma perspectiva internacional ampla sobre essas substâncias, como atual legalidade e indicações, esquemas de tratamento, segurança, eficácia e considerações futuras, o Medscape conversou sobre o tema com nove especialistas de diferentes partes do mundo.

Legalização no mundo

Na maioria dos países, se não todos, ainda é ilegal prescrever psicodélicos, exceto no contexto da pesquisa clínica.

Nos EUA, as substâncias psicodélicas clássicas continuam classificadas como substâncias do Schedule I e, portanto, não estão disponíveis para uso clínico. Podem ser utilizadas em pesquisas, mas somente com a aprovação da Food and Drug Administration (FDA) com autorização da Drug Enforcement Administration.

A França considera todos os alucinógenos sintéticos e os cogumelos alucinógenos como narcóticos. Por conseguinte, a posse, o uso, o transporte e a coleta dessas substâncias estão sujeitos a sanções criminais.

Os antagonistas NMDA, como a quetamina e o óxido nitroso, são considerados moléculas psicodélicas e podem ser usados para outras indicações que não constam na bula ou como parte de protocolos de pesquisa autorizados pelo código de saúde pública francês.

No México, embora os psicodélicos sejam ilegais, costumam ser usados nas comunidades indígenas como parte de seus rituais tradicionais.

"A linha entre o consumo tradicional e o turismo psicodélico é muito tênue", disse ao Medscape o médico Dr. José J. Mendoza Velásquez, professor do Departamento de Saúde Mentalda Universidad Nacional Autónoma de México.

Os psicodélicos também são ilegais no Reino Unido, embora órgãos do governo tenham permitido recentemente que grupos de pesquisadores os investiguem. Os psicodélicos não podem ser prescritos na Alemanha, na Espanha ou na Itália. No entanto, os pesquisadores desses países podem solicitar a permissão das agências reguladoras para realizar pesquisas.

O Brasil permite a pesquisa de substâncias psicodélicas, particularmente a ayahuasca, que tem profundas raízes tradicionais e religiosas no país.

Entretanto, como em outros países, nenhum dos psicodélicos clássicos é regulamentado para uso terapêutico no Brasil. No entanto, há uma alta expectativa de que o governo aprove em 2024 o uso de MDMA para tratar o transtorno do estresse pós-traumático.

Potenciais indicações

Atualmente, os psicodélicos estão sendo investigados como possível tratamento para depressão grave, depressão refratária, transtorno do estresse pós-traumático, controle da dor e da anorexia, entre outras doenças.

Na França, o Dr. Florian Ferreri, Ph.D., médico do Hôpital Saint-Antoine, está pesquisando o uso de quetamina para tratar pacientes com ideação suicida e depressão refratária.

No Reino Unido, o Dr. David Nutt, médico e professor da cátedra Edmond J. Sapra de neuropsicofarmacologia no Imperial College London, e sua equipe fizeram estudos sobre o uso de psicodélicos + apoio psicológico para pacientes com depressão refratária e estão atualmente explorando sua utilização no tratamento da anorexia e de várias síndromes álgicas.

Na Alemanha, o Dr. Gerhard Gründer, médico e professor de psiquiatria do Zentralinstitut für Seelische Gesundheit, indicou que um estudo com psilocibina para a depressão refratária irá começar em 2021. Na Itália, a pesquisa atual está voltada para o uso de MDMA e quetamina em fase pré-clínica – no laboratório e em modelos animais – para o tratamento da depressão e da dependência química.

A pesquisadora Dra. Helen Dolengevich-Sega, psiquiatra do Hospital Universitario del Henares, na Espanha, observou que, embora a pesquisa com escetamina para o tratamento do transtorno depressivo grave com ideação suicida esteja atualmente em andamento, existem muito poucas pesquisas publicadas no seu país sobre o uso de psicodélicos clássicos para os diferentes transtornos psiquiátricos, dada sua atual ilegalidade.

O Dr. José J. Mendoza Velásquez, do México, observou que, embora seja proibido prescrever psicodélicos, ele tem pacientes que tomam essas drogas para potencializar o tratamento farmacológico; por exemplo, disse o médico, seus pacientes costumam usar psilocibina para ajudar a tratar depressão, dor e insônia grave.

O ambiente é fundamental

A maioria dos pesquisadores que trabalha com psicodélicos concorda que, para que o uso dessas substâncias seja seguro e eficaz, instruir o paciente e administrar a substância em um ambiente controlado por médicos experientes são fatores fundamentais para o sucesso do tratamento.

O Dr. Roland R. Griffiths, Ph.D., diretor do Center for Psychedelic and Consciousness Research da Johns Hopkins, nos EUA, disse que a pesquisa contínua com a psilocibina nos EUA – principalmente no transtorno depressivo maior e sofrimento psicológico associado a doenças terminais, dependência química, anorexia nervosa, transtorno obsessivo-compulsivo e cefaleia – geralmente é feita em uma ou duas sessões terapêuticas, cada qual com seis a oito horas de duração.

Nestas sessões, em geral é administrada uma dose oral moderadamente alta de psicodélico em um ambiente que o pesquisador caracteriza como "condições de apoio psicológico".

Para o Dr. Roland, existem sérios riscos potenciais associados ao uso da psilocibina e outros psicodélicos fora deste tipo de ambiente.

"Quando tomados em condições sem controle, os psicodélicos clássicos podem causar confusão e desorientação, resultando em comportamento perigoso para o participante e para outrem, inclusive com risco de risco de vida", disse o pesquisador.

O Dr. Gerhard Gründer concordou.

"No momento, é inconcebível pensar que o paciente iria à farmácia com uma receita de psilocibina, compraria um comprimido e o tomaria em um lugar sossegado", disse o médico. A Dra. Helen e o Dr. José ecoaram estes sentimentos, observando que o contexto ideal para a administração é um local silencioso e seguro, onde os pacientes se sintam à vontade.

O médico Dr. Luís Fernando Tófoli, Ph.D., professor de psicologia médica e psiquiatria da Universidade de Campinas e o biomédico Dr. Eduardo Schenberg, Ph.D., fundador e diretor-executivo do Instituto Phaneros em São Paulo, acreditam ser necessário fazer mais pesquisas para determinar o ambiente terapêutico ideal para cada substância.

"A maioria dos estudos tem poucos participantes (cerca de 20 ou 30), especialmente quando há exames de neuroimagem, com baixos índices de cegamento", disse Dr. Eduardo. "Portanto, também são necessárias novas abordagens metodológicas, já que essas substâncias não se encaixam facilmente no modelo epistemológico da farmacologia tradicional."

Riscos e potencial de uso inapropriado

O potencial de uso inapropriado dos psicodélicos é uma preocupação permanente para o público, os pesquisadores e os regulamentadores, mas o consenso entre quase todos os especialistas com os quais o Medscape conversou é que, quando administradas por médicos em ambientes controlados, o risco associado a estas drogas é extremamente baixo.

É o uso recreativo que representa preocupação de uso inapropriado, disse o Dr. Florian, mas com as baixas doses usadas na psiquiatria, o risco é "muito limitado ou quase inexistente".

O Dr. David disse que o potencial de abuso dos psicodélicos é tão baixo que estas substâncias podem ser usadas para tratar a dependência química.

"Funcionalmente, os psicodélicos são antiviciantes", disse Dr. David. "O fato é que, se você os tomar repetidamente, você desenvolve tolerância e o efeito desaparece. Você não pode superar isso. Mas todos acreditam que são viciantes porque são drogas classificadas no Schedule I."

O Dr. José é um pouco um ponto fora da curva. O médico acredita que o potencial de uso inadequado dos psicodélicos é mal compreendido e que alguns pacientes podem desenvolver tolerância, que é uma potencial porta de entrada para a dependência.

"Como acontece com o LSD", disse Dr. José, "quando essa substância também favorece a tolerância a outros psicodélicos como a psilocibina".

A dose também parece desempenhar um papel fundamental na diminuição dos potenciais abusos, disse o Dr. Luca Pani, médico e professor de farmacologia e psiquiatria da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, na Itália. O Dr. Luca explicou que com doses mínimas e baixas de psicodélicos, o potencial de abuso é eliminado.

Os Drs. David, Luca e Florian também destacaram a importância da supervisão médica. Por exemplo, disse o Dr. Florian, ao administrar a quetamina, sua equipe monitora de perto os parâmetros físicos e mentais (frequência cardíaca e pressão arterial, em particular), porque a droga pode ter efeitos hipertensivos.

O Dr. Eduardo também pontuou que a ibogaína, um psicodélico natural que costuma ser usado pelas comunidades tradicionais africanas em rituais religiosos e para fins medicinais, pode causar arritmias potencialmente fatais, portanto, é fundamental que o tratamento seja administrado em um ambiente hospitalar que tenha uma unidade cardíaca.

O Dr. Luca disse que existe a necessidade de mais pesquisas, especialmente sobre os mecanismos moleculares que promovem os efeitos comportamentais do tratamento com baixas doses de psicodélicos e dos potenciais riscos da repetição dos tratamentos com estas drogas.

"Embora uma única dose de psilocibina tenha sido exaustivamente avaliada do ponto de vista toxicológico, e considerada comprovadamente segura, é necessário fazer novas pesquisas para entender melhor os possíveis riscos para a saúde, especialmente em relação ao tecido cardíaco e pulmonar", disse o médico.

Desafio psicológico

Os especialistas indicam que, dada a relativa falta de experiência com o uso terapêutico de psicodélicos, a preparação dos pacientes para os possíveis efeitos adversos é fundamental. Isto é particularmente relevante no contexto experimental e destaca a necessidade de um rastreamento e acompanhamento adequados do paciente após o tratamento.

O Dr. Gerhard e a Dra. Helen reforçaram a importância de ter uma equipe qualificada disponível no caso de os pacientes apresentarem eventos adversos psicológicos durante o tratamento.

Para o Dr. Gerhard, a possibilidade de a psilocibina levar à perda de controle, causar sintomas psicóticos ou um quadro paranoide justifica um preparo considerável pelo médico assistente.

Ocasionalmente os pacientes sentem medo ou ansiedade durante o tratamento, mais isso costuma ser breve, disse o Dr. Roland. No entanto, estas experiências podem abrir a porta da consciência para uma melhor percepção. "Muitas pessoas referem que esses desafios psicológicos constituem uma parte valiosa da experiência como um todo", disse Dr. Roland.

A situação é semelhante na Espanha, onde a Dra. Helen notou que os esquemas terapêuticos típicos são muito voltados para a experiência do paciente como ferramenta terapêutica. Como no Reino Unido e nos EUA, sua equipe orienta os pacientes ao que chama de "experiência de clímax", que lhes permite obter uma melhor compreensão dos traumas subjacente aos seus problemas de saúde mental.

O Dr. David disse que no Reino Unido, não foram observadas reações adversas nos pacientes que fizeram tratamento com psicodélicos, embora sedativos como benzodiazepínicos pudessem ser usados para controle, se fosse o caso. O pesquisador acrescentou que em seu centro, dois terapeutas estão sempre presentes em todas as sessões, e todos os membros da equipe são "médicos ou psicólogos capacitados".

Orientação do paciente

Preparar e orientar os pacientes sobre o tratamento é fundamental, disse o Dr. Gerhard, especialmente dada a intensidade da resposta terapêutica aos psicodélicos em geral.

Reiterando a fala do Dr. Gerhard, o Dr. Luís Fernando disse que explicar a natureza do tratamento psicodélico para os potenciais pacientes ajuda a aliviar a ansiedade.

Dr. Roland observou que, nos EUA, os participantes do estudo não são apenas orientados sobre os possíveis efeitos dos psicodélicos, mas também fazem várias horas de preparação psicológica antes da primeira sessão de tratamento e recebem apoio psicológico após o tratamento.

Existe também uma forte ênfase na preparação e na orientação dos pacientes no Reino Unido, onde os pacientes se encontram com terapeutas antes e depois do tratamento. Durante estas reuniões de conversa após o tratamento, os médicos utilizam a experiência dos pacientes com os psicodélicos para ajudá-los a compreender a causa subjacente da sua depressão.

O Dr. Eduardo também informou que, na sua instituição, em São Paulo, eles criaram cursos on-line para ensinar os médicos sobre o tratamento psicodélico dos transtornos psiquiátricos. No ano que vem, acrescentou, vai ser iniciado um novo programa de treinamento em psicoterapia assistida por MDMA.

Trabalhando nos protocolos de tratamento

Os protocolos terapêuticos com psicodélicos variam de acordo com a substância e a indicação clínica, de país para país. Por exemplo, o Dr. Luca informou que atualmente a pesquisa com psicodélicos na Itália está voltada predominantemente para doses mínimas, com a administração de 1% da dose farmacologicamente ativa até no máximo 100 μg, em contraste a doses baixas ou dose plena.

Os esquemas terapêuticos no Brasil, disse Dr. Eduardo, também diferem por substância, mas compartilham elementos em comum; por exemplo, os psicodélicos são sempre administrados em ambiente de pesquisa, e as sessões são feitas junto com a psicoterapia.

Na Alemanha, os pesquisadores estão trabalhando para determinar o esquema terapêutico ideal para a psilocibina nos casos de depressão refratária em um estudo randomizado com três braços, planejado para 2021.

Para o Dr. José, do México, os esquemas de tratamento são complexos e variados. De qualquer maneira, disse o pesquisador, os pacientes sempre precisam ser acompanhados em longo prazo.

Com o tratamento com quetamina, o Dr. Florian disse que sua equipe administra a droga em sessões de infusão intravenosa durante 45 a 60 minutos, em um quarto de hospital, sem estímulos luminosos ou sonoros. Independentemente do efeito imediato do medicamento, disse o pesquisador, o protocolo é repetido em um intervalo de seis meses.

A questão da duração do efeito do tratamento é importante. O Dr. Roland disse que a pesquisa sugere que os efeitos positivos da psilocibina são prolongados e que a maioria das pessoas refere mudanças positivas no humor, na atitude e no comportamento, que dura meses ou mesmo anos após a sessão.

"Nossa pesquisa mostrou que os benefícios dessas experiências podem durar até 14 meses, muitas vezes mais tempo, e que muitos participantes caracterizam sua experiência com a psilocibina como entre as experiências mais profundas e pessoalmente significativas de suas vidas", disse Dr. Roland.

O Dr. David concordou, notando que uma única "viagem" intensa pode melhorar o humor durante semanas, meses ou até mesmo anos. No entanto, disse o médico, em sua experiência, aproximadamente três quartos dos pacientes tratados com psicodélicos têm recidiva da depressão maior em de três a nove meses.

"A maioria fica melhor", disse ele, "mas a maior parte dos quadros depressivos voltam em alguns meses".

Dado que as drogas são atualmente ilegais, Dr. David disse que é quase impossível fornecer aos pacientes um tratamento regular e continuado com psicodélicos.

"Minha suspeita é que você poderia muito bem ter de administrar quatro ou cinco doses em alguns anos para que as pessoas se livrassem de um quadro depressivo muito grave" disse o Dr. David. "Quanto mais tempo de doença, mais difícil é a recuperação completa, porque a doença está mais arraigada no cérebro."

Todos os especialistas concordam que os tempos vindouros são emocionantes em relação ao uso de psicodélicas como terapêutica para uma ampla gama de transtornos psiquiátricos.

"Podemos esperar o crescimento e a expansão contínuos desta pesquisa", disse o Dr. Roland, "inclusive o aperfeiçoamento de protocolos para várias indicações terapêuticas e para o desenvolvimento de uma variedade de novas substâncias psicodélicas clássicas".

Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube

Comente

3090D553-9492-4563-8681-AD288FA52ACE
Comentários são moderados. Veja os nossos Termos de Uso

processing....