COMENTÁRIO

Índice de atenuação de gordura (FAI): uma mudança de paradigma na cardiologia

Dr. Fabiano M. Serfaty

Notificação

11 de fevereiro de 2021

O Dr. Cheerag Shirodaria é cardiologista e consultor honorário do Oxford University Hospitals NHS Foundation Trust, no Reino Unido. Também é cofundador e CEO da Caristo Diagnostics, uma empresa spinout da University of Oxford. Cheerag e equipe desenvolveram o índice de atenuação de gordura (FAI, sigla do inglês Fat Attenuation Index), um método não invasivo para medir alterações que levam à aterosclerose a partir da análise da angiotomografia de coronária. Em entrevista ao Medscape o Dr. Cheerag contou mais detalhes sobre o FAI.

Dr. Fabiano Serfaty: Conte um pouco sobre como você e a sua equipe começaram a estudar a influência do tecido adiposo na saúde humana

Dr. Cheerag Shirodaria: Ao longo dos anos percebemos, por meio dos nossos estudos, que o tecido adiposo ao redor das artérias coronárias (tecido adiposo perivascular) libera mediadores químicos que danificam as coronárias e causam aterosclerose. Nossas pesquisas mostraram que, em decorrência da aterosclerose, as próprias coronárias produzem citocinas que alteram a textura e a composição do tecido adiposo circundante. [1] É importante ressaltar que essas alterações podem ocorrer antes que qualquer placa aterosclerótica seja visível nas próprias coronárias. [1] Por isso, desenvolvemos um método não invasivo para medir essas alterações a partir da análise da angiotomografia de coronária (CCTA, sigla do inglês Coronary Computed Tomography Angiography), que denominamos de índice de atenuação de gordura (FAI, sigla do inglês Fat Attenuation Index).

Dr. Fabiano Serfaty: Por que esse método é diferente dos demais?

Dr. Cheerag Shirodaria: Sabemos há mais de 50 anos que a aterosclerose é uma doença inflamatória que leva a disfunção endotelial, formação de placa e, por fim, ruptura da placa. O tecido adiposo perivascular (PVAT, sigla do inglês Perivascular Adipose Tissue) desempenha um papel fundamental na regulação da homeostase vascular e da doença, e participa de uma interação bidirecional complexa com a parede arterial adjacente. Na presença de inflamação vascular, a liberação de mediadores pró-inflamatórios no PVAT circundante bloqueia a capacidade dos pré-adipócitos perivasculares se diferenciarem em adipócitos carregados de lipídios maduros. Isso cria um gradiente induzido por inflamação na composição do PVAT que pode ser detectado na angiotomografia de coronária, como mudanças espaciais na textura radiômica do PVAT, quantificadas pelo índice de atenuação de gordura, o FAI.

Pela primeira vez, o FAI nos fornece informações sobre a inflamação coronária a partir da análise de uma angiotomografia de rotina, ao contrário de outros exames de imagem, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET, sigla do inglês, Positron Emission Tomography), que é cara, tem disponibilidade clínica limitada e está associada a alta exposição à radiação. Além disso, o FAI é muito mais específico do que os biomarcadores sistêmicos, como a proteína C reativa (PCR) ultrassensível.

Dr. Fabiano Serfaty: Como o FAI detecta artérias coronárias doentes?

Dr. Cheerag Shirodaria: Os mediadores inflamatórios liberados por uma artéria coronária inflamada causam mudanças no tamanho e na composição do tecido adiposo perivascular ao redor das artérias. Estas alterações podem ser detectadas em uma CCTA padrão como o FAI. Essas alterações podem ocorrer antes que quaisquer placas ateroscleróticas sejam visíveis nas próprias artérias coronárias.

Nas figuras acima, embora estas duas artérias coronárias pareçam normais através da análise de uma CCTA convencional, a análise com o algoritmo da Caristo baseado em inteligência artificial e denominado CaRi-Heart, mostra que uma das artérias é normal (A1 e A2) e a outra é uma artéria doente (B1 e B2), devido à inflamação perivascular, o que pode levar a um infarto agudo do miocárdio.

Dr. Fabiano Serfaty: Publicado no periódico The Lancet, o estudo CRISP-CT validou o FAI em aproximadamente 4.000 pacientes que realizaram angiotomografia de coronária. O estudo mostrou, mesmo após o ajuste para fatores de risco cardíaco conhecidos, que um FAI alterado foi associado a risco de morte cardíaca pelo menos cinco vezes maior. Você pode explicar melhor esses achados?

Dr. Cheerag Shirodaria: O CRISP-CT envolveu uma população de pacientes da Europa e dos Estados Unidos que realizaram as angiotomografias de coronária [2] e demonstrou que um FAI alterado estava associado a um aumento de seis a nove vezes no risco de infarto agudo do miocárdio (IAM) fatal e um aumento de cinco vezes no risco de IAM não fatal. O que chamou muita atenção foi o fato de o valor preditivo positivo do FAI ter sido maior do que o dos fatores de risco mais tradicionais para estratificação de risco cardiovascular, como tabagismo, diabetes, carga de placa coronariana e características das placas coronarianas de alto risco nas angiotomografias de coronária. [2]

É importante ressaltar também que o FAI perivascular não teve associação com o escore de cálcio coronariano ou com a carga de cálcio local no segmento vascular adjacente, o que demonstra que o FAI fornece informações complementares e adicionais às informações anatômicas da carga e da composição da placa coronariana.

Dr. Fabiano Serfaty: Estamos passando por uma mudança de paradigma na maneira como vemos e tratamos a doença coronariana, visto que os pacientes que sofrem infarto são os que têm as artérias mais bloqueadas – ou este é um conceito antigo?

Dr. Cheerag Shirodaria: Concordo com você. Sinto que, de fato, estamos vivendo uma mudança de paradigma na maneira de ver e tratar a doença coronariana. Todos os exames de diagnóstico por imagem que usamos na cardiologia hoje (ecocardiograma sob estresse, cintilografia do miocárdio, ressonância magnética cardíaca, cateterismo cardíaco) têm como objetivo a detecção de estenoses coronarianas ou de isquemia miocárdica. No entanto, sabemos que 50% dos ataques cardíacos acontecem devido à erosão súbita ou ruptura de placas "não significativas", ou seja, placas que não causam estenose. Infelizmente, este grupo de pacientes é totalmente perdido nos exames de imagem atuais. O oposto também é verdade, pois muitos pacientes com placas grandes e calcificadas não sofrem ataques cardíacos. Também sabemos que o principal fator de ruptura da placa coronária é a inflamação, mas, até agora, não tínhamos meios de detectar a inflamação coronariana.

O FAI é um teste não invasivo que detecta inflamação nas artérias coronárias, identificando as coronárias inflamadas antes do desenvolvimento de placas ateroscleróticas, permitindo o tratamento precoce com medidas de prevenção primária. O exame também faz a detecção das placas ateroscleróticas inflamadas propensas ao rompimento, permitindo o tratamento precoce com o intuito de estabilizá-las e assim evitar infartos, ou mesmo promover o tratamento precoce com medidas que possam prevenir as consequências da síndrome coronariana aguda, que pode levar a morte súbita.

Dr. Fabiano Serfaty: Na sua opinião, os médicos que vêm realizando angiotomografias de coronária atualmente estão perdendo alguns parâmetros iniciais de inflamação e características da placa que poderiam prever um quadro de infarto agudo do miocárdio ou morte súbita?

Dr. Cheerag Shirodaria: Sim, infelizmente é o que está acontecendo. Embora saibamos há mais de 50 anos que a aterosclerose é uma doença inflamatória, não havia uma maneira de detectá-la facilmente. Como resultado, a maioria dos médicos avalia apenas o grau de estenose nas angiotomografias de coronária, e toma decisões de tratamento (clínico ou cirúrgico) baseado nisto.

Avanços recentes em nossa compreensão da biologia da ruptura da placa destacaram ainda mais a importância da inflamação e da caracterização da placa na patogênese da ruptura. O que faltava até agora eram ferramentas e métodos de análise de imagem que nos permitissem quantificar facilmente estas mudanças. Por isso, para que possamos fornecer um relatório de uma angiotomografia de coronária verdadeiramente detalhado, é necessário que possamos incluir uma análise das características das placas coronarianas e do FAI.

Dr. Fabiano Serfaty: Qualquer angiotomografia de coronária pode usar o FAI?

Dr. Cheerag Shirodaria: A Caristo pode realizar a análise FAI em qualquer CCTA que seja realizada de acordo com as diretrizes do SCCT (pelo menos 64 slices). A análise requer conhecimento especializado, daí a razão pela qual a Caristo fornece análises por meio de um software que auxilia o médico a interpretar os achados no exame.

Dr. Fabiano Serfaty: As calculadoras de risco, como o Escore de Risco de Framingham para Doença Cardíaca Coronariana, são suficientes na prática clínica para prever eventos cardiovasculares e mortalidade nos pacientes?

Dr. Cheerag Shirodaria: Calculadoras de risco como Framingham e ESC-SCORE desempenham um papel importante na tomada de decisão clínica. Mas elas incluem apenas fatores de risco convencionais, como idade, tabagismo, hipertensão e colesterol, não detectam nenhuma informação sobre inflamação coronária, que é um componente-chave do risco de síndrome coronariana aguda. A avaliação da inflamação coronariana realmente deve ser incluída para ajudar a prever eventos cardíacos em todos os pacientes

Dr. Fabiano Serfaty: O FAI tem autorização de algum órgão regulador como a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos, Conformitè Europëenne (CE) Mark da União Europeia ou Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aqui no Brasil?

Dr. Cheerag Shirodaria: O CaRi-HEART já recebeu aprovação regulatória na Europa (CE) e nos EUA (FDA). Pretendemos apresentar o produto em breve à Anvisa, porque vemos o Brasil e a América Latina como uma região muito importante para nós. A análise do FAI exigiu muitos anos de estudos, por isso criamos a Caristo para trazer essa tecnologia para ajudar os médicos a tomarem decisões mais informadas sobre o tratamento dos pacientes na prática clínica diária.

Dr. Fabiano Serfaty: O estudo Rule Out Myocardial Infarction/Ischemia Using Computer Assisted Tomography I (ROMICAT I) demonstrou que a presença de estenose > 50% teve valor diagnóstico limitado para síndrome coronariana aguda como apenas 46% dos pacientes que tiveram doença coronariana obstrutiva avaliada por angiotomografia de coronária; portanto, o manejo ideal de pacientes com doença coronariana significativa na angiotomografia de coronária permanece incerto neste cenário. O método que vocês desenvolveram também é capaz de avaliar esse risco e essas características das placas?

Dr. Cheerag Shirodaria: As características da placa coronariana de alto risco são importantes, mas parece que o FAI é ainda mais importante. Nossa publicação recente no periódico JACC destacou uma melhora notável na estratificação de risco quando o FAI é adicionado às características das placas coronarianas de alto risco na interpretação de angiotomografias de coronária de rotina. [3]

Na presença de um valor baixo do FAI, as características das placas coronarianas de alto risco (HRP) não foram associadas a um aumento do risco cardíaco nos pacientes, enquanto a presença de um valor alto do FAI associado às características das HRP foi associada a um grupo de pacientes com risco cardíaco mais elevado. [3]

Portanto, a análise e avaliação mais completa e aprofundada de uma angiotomografia de coronária deve incluir a análise das características da placa, assim como o FAI. Isso nos proporcionará novas possibilidades na estratificação do risco cardiovascular, no manejo clínico, no tratamento personalizado e na prevenção primária e secundária das doenças cardiovasculares dos nossos pacientes.

Dr. Fabiano Serfaty: A análise do FAI e das placas coronarianas através da angiotomografia de coronária vai acabar com o foco da doença coronariana apenas na estenose do lúmen?

Dr. Cheerag Shirodaria: Espero que sim. Acho que a maioria dos médicos já consegue entender, com base nas evidências mais recentes, que a estenose luminal por si só não é suficiente. Os resultados do estudo ISCHEMIA mostraram isso, assim como muitos outros ao longo dos anos. A angiotomografia de coronária é um exame de imagem adequado para ser utilizado na prática clínica, pois o teste é não invasivo, rápido, pode ser realizado em qualquer tomógrafo moderno e fornece muitas informações sobre uma variedade de parâmetros diferentes (por exemplo, características da placa, FAI). Antigamente, a dose de radiação era um problema, mas com tomógrafos e técnicas mais modernas, isso não é mais um grande obstáculo hoje.

Dr. Fabiano Serfaty: Considerando que a tecnologia desenvolvida pela Caristo mede a inflamação, o exame teria algum papel na detecção da covid-19?

Dr. Cheerag Shirodaria: Esta é uma excelente pergunta! O acúmulo de evidências sugere que a patogênese da covid-19 é caracterizada por uma resposta inflamatória induzida por citocinas e por infecção viral direta do endotélio que leva à inflamação vascular difusa. Juntamente com a University of Oxford, desenvolvemos um método para quantificar o grau de inflamação vascular em pacientes com covid-19 aguda a partir da análise de qualquer angiografia por tomografia computadorizada (TC), incluindo angiotomografias pulmonares por TC. Descobrimos que os pacientes com níveis aumentados de inflamação vascular tinham risco de internação na unidade de terapia intensiva (UTI) e de morte cinco vezes maior. [4]

Esta tecnologia tem o potencial de permitir que os médicos personalizem suas decisões de tratamento em pacientes com infecção aguda por SARS-CoV-2, de acordo com o risco do paciente. Também sabemos que o SARS-CoV-2 ativa as mesmas vias inflamatórias que são importantes na aterosclerose, por isso estamos avaliando a hipótese de os pacientes que tiveram covid-19 apresentarem um risco cardiovascular mais elevado em longo prazo.

O FAI nos permitirá quantificar facilmente o risco cardiovascular futuro nesta importante parte da população que teve covid-19. Dada a natureza dinâmica do FAI, também seremos capazes de monitorar sua resposta aos tratamentos iniciados para modificar o risco cardiovascular futuro dos pacientes.

Dr. Fabiano Serfaty: Apesar dos avanços na tecnologia de quantificação de placa, a angiotomografia de coronária atualmente é interpretada e relatada clinicamente da mesma forma que a angiografia coronária invasiva convencional. Como podemos mudar essa mentalidade e essa situação?

Dr. Cheerag Shirodaria: Precisamos de melhores ferramentas de análise. A análise mais aprofundada e detalhada da placa pode levar de duas a três horas para ser concluída de maneira adequada, tempo que um médico ocupado simplesmente não tem. As ferramentas que a Caristo e outras empresas estão desenvolvendo ajudarão a aliviar o fardo da análise prolongada destes exames pelos médicos, permitindo que estes dediquem mais tempo ao tratamento e cuidado dos pacientes.

Podemos usar a tecnologia do FAI na prática clínica?

Dr. Cheerag Shirodaria: Atualmente estamos utilizando o FAI em estudos clínicos envolvendo novas terapias anti-inflamatórias cardíacas. A previsão é que ainda este ano a Caristo receba as aprovações regulatórias para análise do FAI na prática clínica em vários países da Europa e nos Estados Unidos.

Podemos usar este método para diagnóstico e tratamento?

Dr. Cheerag Shirodaria: Com certeza. Demonstramos a natureza dinâmica do FAI em resposta aos tratamentos farmacológicos em um estudo conduzido pelo National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, que avaliou os efeitos das terapias biológicas anti-inflamatórias usadas para tratar a psoríase, que está associada a aumento do risco cardiovascular. O estudo mostrou que certas terapias biológicas, mas não as terapias tópicas ou não biológicas como o metotrexato, podem reduzir significativamente a inflamação coronariana. [5]

A natureza dinâmica do FAI faz com que ele possa ser usado para monitorar a capacidade de resposta de um paciente às intervenções terapêuticas propostas a ele. Se, por exemplo, um paciente que está fazendo um novo tratamento, apresentar o FAI elevado, este tratamento específico que está sendo proposto deve ser intensificado ou modificado.

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