Níveis muito baixos de lipoproteína de alta densidade do colesterol (HDL, sigla do inglês, High-Density Lipoprotein), hipertrigliceridemia grave e hipercolesterolemia familiar são algumas situações difíceis que os médicos podem se deparar no consultório quando atendem pacientes dislipidêmicos. Para discutir as melhores condutas nesses casos, especialistas se reuniram em um simpósio realizado durante o 34º Congresso Brasileiro de Endocrinologia e Metabologia (CBEM), realizado on-line pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) no final de 2020. A sessão foi moderada pelo Dr. Alexis Dourado Guedes, médico e professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), e pelo Dr. Joaquim Custódio da Silva Junior, médico do Hospital Aliança e diretor científico da Sociedade Brasileira de Diabetes – Regional Bahia (SBD Bahia), do CardioVascular Center e do Instituto Federal da Bahia (IFBA).
HDL muito baixo
De acordo com a Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose, [1] considera-se que uma mulher apresenta valores baixos de HDL quando o nível é < 40 mg/dL e, no caso dos homens, quando < 50 mg/dL. Segundo a Dra. Joana Dantas, médica endocrinologista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HCFF-UFRJ), do Hospital Pró-Cardíaco e membro da diretoria da SBD – Rio de Janeiro, estariam abaixo do percentil 10, podendo, portanto, ser considerados com níveis muito baixos de HDL, homens com valores < 30 mg/dL e mulheres com níveis < 35 mg/dL.
Quando um médico se depara com um caso de HDL muito baixo, é fundamental, segundo a palestrante, excluir doenças secundárias. Uma hipertrigliceridemia muito significativa, por exemplo, pode levar à redução importante do HDL. Além disso, o uso de anabolizantes, de corticoides e até mesmo reposição hormonal na mulher podem estar por trás dessa redução. “Devemos atentar também para mieloma múltiplo. Em pacientes que tinham HDL normal e de repente aparecem com HDL muito baixo, devemos pensar em doença inflamatória, câncer de início recente ou desnutrição”, explicou a médica, lembrando que, nos casos mais graves (HDL < 10 mg/dL), é importante procurar xantomas, opacificação do cristalino, hipertrofia de amígdalas, neuropatia periférica e história de HDL muito baixa na família, pois é possível que haja um componente genético envolvido. “Vamos ter na família pai e mãe com HDL em torno de 20 mg/dL se forem heterozigotos e o caso índice apresentando valores extremamente baixos nas formas homozigóticas”, alertou.
Baixos níveis de HDL do colesterol têm sido associados a risco elevado de doença cardiovascular, no entanto, as estratégias terapêuticas que promovem um considerável aumento dos níveis de HDL do colesterol (p. ex.: torcetrapibe) ou não trazem benefícios [2] ou apresentam discreta redução do risco de morte cardiovascular, infarto agudo do miocárdio (IAM) e acidente vascular cerebral (AVC) (p. ex. anancetrapibe). [3]
Quanto aos medicamentos atualmente disponíveis no mercado que promovem um aumento de 10% a 30% nos níveis de HDL (p. ex.: niacina, fibratos, estatinas e tiazolidinedionas), a Dra. Joana lembrou que nenhum deles foi avaliado em estudos que tiveram como objetivo primário aumentar a HDL. Além disso, também não há evidências de benefício cardiovascular associada a nenhum desses fármacos, com exceção dos fibratos quando usados em um subgrupo com triglicerídeos > 204 mg/dL e HDL < 34 mg/dL. [4]
A diretriz brasileira, segundo a Dra. Joana, não recomenda o uso de medicamentos específicos para aumentar a HDL em pacientes que estiverem recebendo tratamento adequado para outros problemas. De acordo com a endocrinologista, os médicos devem recomendar que os pacientes pratiquem atividade física, se possível sigam uma dieta mediterrânea (rica em ômega 3, ômega 6) e controlem o diabetes e o peso adequadamente. O nosso foco vai ser intensificar o tratamento das moléculas aterogênicas – LDL e colesterol não HDL”, destacou a palestrante, e acrescentou que as novas terapias sendo investigadas nesse contexto estão mais focadas na função da HDL do que em seu nível propriamente dito.
Hipertrigliceridemia grave
Existem várias definições em relação aos níveis de triglicerídeos, entre elas, a da Endocrine Society, que estabelece níveis de triglicerídeos > 1.000 mg/dL como parâmetro de hipertrigliceridemia grave, já a European Atherosclerosis Society e a European Society of Cardiology estabelecem níveis de triglicerídeos > 880 mg/dL. Segundo o Dr. Márcio Lauria, médico endocrinologista do Hospital Felício Rocho e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esta é uma doença rara, que acomete entre 0% e 1% da população. [5]
Na prática clínica, as manifestações ou complicações podem incluir xantomas eruptivos, lipemia retinal, hepatoesplenomegalia ou esplenomegalia, dor abdominal, pancreatite e episódios recorrentes de pancreatite. Quanto mais grave a hipertrigliceridemia, maior a chance de apresentar algum dos três últimos sintomas. O Dr. Márcio destacou ainda que a principal complicação associada à hipertrigliceridemia grave é a pancreatite aguda, em função do excesso de quilomícrons.
O diagnóstico diferencial de hipertrigliceridemia grave é amplo. Segundo o palestrante, vale destacar principalmente a síndrome da quilomicronemia familiar, uma doença autossômica recessiva, e a quilomicronemia multifatorial, que envolve a ação de vários genes em associação com causas secundárias. Além disso, é necessário atentar para lipodistrofias parciais tipo Dunnigan e Köbberling, glicogenose tipo 1A e doenças autoimunes.
Com relação às quilomicronemias, o Dr. Márcio explicou que a quilomicronemia multifatorial tem gênese mais complexa e geralmente é mais comum do que a síndrome da quilomicronemia familiar. “A síndrome da quilomicronemia familiar é tão grave que praticamente não precisa de fator secundário, ou seja, a causa monogênica, por si só, já leva a um quadro de hipertrigliceridemia grave. Por outro lado, a multifatorial depende também dos fatores secundários”, disse o médico, lembrando que essas causas secundárias envolvem uma extensa lista de fatores, entre eles, o ganho ponderal, uso abusivo de álcool, obesidade, síndrome metabólica, resistência insulínica, diabetes mellitus tipo 1 e 2, hipotireoidismo, doenças renais, gravidez, paraproteinemia, doenças autoimunes e medicamentos. Entre os fármacos estão, por exemplo, estrogênio oral, tamoxifeno, isotretinoína, ciclosporina, sirolimus, L-asparaginase, propofol, inibidores da protease e interferon. Outros medicamentos, como tiazida, betabloqueadores e glicocorticoides, também podem ser causas secundárias, mas o efeito é menor do que os citados anteriormente.
Quando se suspeita de síndrome da quilomicronemia familiar, o Dr. Márcio considera que vale a pena solicitar um teste genético. Essa medida pode ser importante também para verificar a necessidade de rastrear familiares. Já no caso da quilomicronemia multifatorial a investigação genética pode não ser tão relevante, visto que o resultado interferirá pouco na conduta médica.
Segundo o especialista, o tratamento da pancreatite aguda é similar ao das outras etiologias. Insulina venosa, heparina e plasmaférese podem ser usadas em casos muito específicos. O tratamento preventivo engloba atuar nas causas secundárias, lançando mão de estratégias não farmacológicas (mudança no estilo de vida, incluindo abstinência alcoólica, perda ponderal, exercício aeróbico e alterações alimentares), bem como de fibratos e ômega 3 em altas doses, objetivando alcançar níveis de triglicerídeos < 500 mg/dL.
Hipercolesterolemia familiar
Segundo o Dr. Rodrigo Moreira (RJ), médico colaborador do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro (IEDE) e ex-presidente da SBEM (2019/2020), a hipercolesterolemia familiar é uma das doenças genéticas mais comuns no Brasil e, provavelmente, todo o endocrinologista se deparou com um caso no consultório. Embora em adultos a conduta seja muito clara (prescrição de estatinas), a situação pode ser mais desafiadora quando acomete crianças.
As diretrizes internacionais [6] recomendam que toda a criança tenha o perfil lipídico avaliado entre 9 e 11 anos de idade e depois entre 17 e 21 anos. A LDL do colesterol é considerada elevada quando estiver > 130 mg/dL. “Na maioria das crianças e adolescentes com LDL e triglicerídeos elevados, estamos falando de obesidade, de causa secundária e vemos valores em torno de 140 a 150 mg/dL. Valores > 300 mg/dL indicam hipercolesterolemia familiar”, alertou o palestrante, e acrescentou que mesmo nesses casos é necessário excluir causas secundárias, por exemplo, hipotireoidismo, síndrome nefrótica e doenças hepáticas.
Após a exclusão de todas as outras causas, o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar não depende de análise genética. Segundo o especialista, de acordo com o critério clínico da Dutch Lipid Network, o nível de LDL é muito informativo, especialmente quando estiver muito alto (> 340 mg/dL), e acaba determinando a presença da hipercolesterolemia familiar.
Como a hipercolesterolemia familiar clássica é uma doença autossômica dominante, o médico destacou a importância de, ao identificar um caso, também investigar os familiares do paciente, pois o gene com certeza foi herdado do pai ou da mãe e, portanto, existe pelo menos uma outra pessoa afetada na família. Nesse ponto, a genética torna-se importante para fazer o rastreamento em cascata. Em sua rotina clínica, o Dr. Moreira realiza o sequenciamento para essa doença no Hipercol Brasil, programa gratuito do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
O tratamento da hipercolesterolemia familiar é feito com estatinas. “Nos pacientes com LDL > 190 mg/dL, de acordo com as diretrizes, vamos considerar o uso de estatina após os 10 anos de idade ou após Tanner 2 em meninos e após a menarca nas meninas. [6] No entanto, na prática clínica, precisamos avaliar se vale a pena esperar até os 10 anos de idade em casos graves”, destacou o especialista, explicando que, no dia a dia, quando surgem crianças com quadros graves frequentemente se inicia estatina já com quatro, cinco anos de idade, e o paciente segue sendo monitorado.
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Citar este artigo: Melhores práticas na dislipidemia - Medscape - 5 de janeiro de 2021.