'Uma ofensa à ciência': Novo aplicativo do Ministério da Saúde promove uso de medicamentos sem comprovação de eficácia contra covid-19

Mônica Tarantino

Notificação

19 de janeiro de 2021

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O Ministério da Saúde lançou recentemente um novo aplicativo para auxiliar profissionais de saúde a realizarem o diagnóstico de covid-19. Batizado de TrateCOV , o aplicativo incentiva a prescrição de cinco medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença ou cuja eficácia ainda não foi comprovada: difosfato de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina. A plataforma também indica a dexametasona para o tratamento precoce, desaconselhado nessa fase da doença, e sulfato de zinco. São recomendações sobre as quais os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos, bem como várias sociedades médicas, afirmam: não há tratamento precoce para a covid-19. Uma delas é a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), que em seu informe número 16, realizado em julho de 2020, listou estudos, apontando que a hidroxicloroquina deve ser banida do tratamento em qualquer fase da covid-19.

A nova plataforma foi anunciada em 11 de janeiro durante a visita do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, à capital Manaus (AM), e disponibilizada para os médicos e enfermeiros da região antes de ser lançada nacionalmente. O Ministério da Saúde anunciou também a instalação de tendas ao lado dos postos de saúde para capacitar os profissionais a usarem a ferramenta, buscando agilizar o atendimento dos pacientes com covid-19 nesses locais, conforme o texto sobre o aplicativo publicado no perfil do Ministério no Twitter .

https://twitter.com/minsaude/status/1349746971406286848

Funcionamento e prescrição

Depois de pedir que o profissional de saúde se cadastre, o aplicativo apresenta um questionário para estabelecer o "escore de gravidade" do paciente, com perguntas sobre sintomas, comorbidades e frequência de situações de exposição. Feito o diagnóstico, os pacientes que alcançarem a marca de seis pontos preenchem os critérios do TrateCOV para a indicação de tratamento precoce. Antes, porém, o profissional deve responder se vai ou não administrar a terapia. Caso indique que sim, aparece a recomendação para fazer o teste por transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR, sigla do inglês, Reverse Transcription Polymerase Chain Reaction) e uma relação de medicamentos a serem prescritos àquele paciente (veja a imagem abaixo). Se o profissional marcar não, deverá justificar sua decisão. Segundo o Ministério da Saúde, as recomendações variam de acordo com a gravidade da infecção.

Para os especialistas entrevistados pelo Medscape, o aplicativo promove a desinformação ao incentivar, sob a chancela do Ministério da Saúde, o uso medicamentos sem comprovação científica para terapia precoce na covid-19.

"O que a gente mais gostaria que existisse é um tratamento precoce, algo que permitisse uma intervenção para reduzir o risco de complicação e morte, porém, os dados científicos são claros ao mostrar que ainda não há tratamento que reduza os riscos", disse ao Medscape o Dr. André Siqueira, infectologista e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia (INI) Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Dentre os medicamentos relacionados pelo TrateCOV, dois foram alvo de diversos estudos que documentam a sua ineficácia em qualquer etapa da doença. "Indicar cloroquina e hidroxicloroquina vai contra todas as evidências de estudos existentes. Isso é uma ofensa à ciência", disse ao Medscape o Dr. Júlio Croda, infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Yale School of Public Health, nos Estados Unidos, e pesquisador ligado à Fiocruz.

O Dr. Júlio lembrou que, justamente na cidade de Manaus, foi realizado um dos 10 estudos mais citados da literatura científica em 2020. Publicado no periódico JAMA Network Open, o ensaio clínico randomizado de fase 2B, que buscou mostrar a segurança e eficácia do difosfato de cloroquina como terapia adjuvante em pacientes hospitalizados com covid-19 grave, revelou que doses mais altas (até então preconizadas como a dose terapêutica para covid-19) estavam associadas a arritmia cardíaca e morte, o que gerou a interrupção do estudo.

Além disso, um estudo randomizado e controlado por placebo, feito nos Estados Unidos e no Canadá testando a eficácia da hidroxicloroquina como profilaxia em pessoas que haviam sido expostas ao coronavírus, mostrou que o medicamento não preveniu o desenvolvimento de covid-19 ou a confirmação da infecção pelo vírus.

"Faltou oxigênio em Manaus. Isso que é tratamento precoce, não remédios sem efeito", disse o Dr. Júlio ao Medscape.

Outra substância cujo uso é aconselhado nesta plataforma do Ministério da Saúde para o tratamento precoce da covid-19 é a ivermectina. "A maioria dos estudos publicados sobre ivermectina não comprova resultados clínicos para a covid-19 e os trabalhos são inconclusivos", disse o Dr. Júlio. Por falta de dados científicos confiáveis e robustos, a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA e autoridades de saúde do México, por exemplo, já declararam que a ivermectina não é um tratamento anticovid.

"O uso da ivermectina preventivo ou precoce é baseado em um estudo in vitro com doses 50 vezes maiores do que as que são administradas a humanos. Não se pode decidir ações em saúde com base nisso", explicou o Dr. André, que atende pacientes com covid-19 na linha de frente na Fiocruz e em Niterói, no Rio de Janeiro, e participa de estudos observacionais para caracterizar critérios de gravidade de complicações da covid-19, bem como de ensaios clínicos com novos medicamentos para tratar a doença.

A inclusão de dois antibióticos, azitromicina e doxiciclina, na lista de medicamentos sugeridos pelo TrateCOV também foi criticada pelos especialistas. "No princípio da pandemia, a azitromicina chegou a ser usada, mas foi retirada da linha de tratamento depois que o estudo Recovery, com 8.000 pacientes no Reino Unido, demonstrou de forma contundente que não tinha ação", explicou o Dr. André. Além de não ser uma solução, o uso de antibióticos para o tratamento precoce da covid-19 pode ter consequências preocupantes.

"São medicamentos importantes. A azitromicina é valiosa em complicações bacterianas e outras pneumonias. Receitar sem indicação concreta é um caminho para criar resistência bacteriana. A doxiciclina também é uma droga preciosa a ser usada se o paciente tiver complicações, mas pode ser terapêutica desperdiçada se for usada de forma precoce e inadequada", disse ao Medscape o Dr. José Carvalho de Noronha. Médico formado há mais de 50 anos, ele foi secretário estadual de Saúde do Rio de Janeiro e de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, entre outros cargos públicos. Também foi presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco).

"É importante lembrar que a resistência bacteriana, um grande problema no mundo, faz parte das 10 ameaças à saúde listadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020", disse.

O uso da dexametasona, um corticosteroide, igualmente está em desacordo com os consensos científicos. "A dexametasona é claramente benéfica em pacientes graves que precisam de oxigênio, mas, se administrada fora dessa situação e precocemente, diminui a resposta imunológica e pode levar à piora do estado do paciente, com mais complicações", esclareceu o Dr. André.

Como diz o ditado, "às vezes você puxa uma pena e sai uma galinha". No caso, o TrateCOV não é uma peça isolada da ação do Ministério da Saúde. O aplicativo está em acordo com as falas do ministro da Saúde, enfatizando a importância do tratamento precoce em suas manifestações. No dia 14 de janeiro, ao comentar a situação no Amazonas na live semanal transmitida pelas contas oficiais do presidente da República nas redes sociais, Pazuello atribuiu a tragédia em Manaus a três fatores: O primeiro seria o ciclo sazonal e o período de chuvas, o segundo seria o fato da população de Manaus não ter aderido ao uso dos medicamentos (sem comprovação científica) preconizados no aplicativo, e o terceiro seria a rede de atendimento especializado, segundo o Ministro "bastante reduzida".

"Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce com diagnóstico clínico no atendimento básico e isso impactou muito a gravidade da doença", disse o ministro. Antes disso, no dia 12 de janeiro, o presidente da República disse que precisou intervir em Manaus, porque "não faziam tratamento precoce".

A disseminação do tratamento precoce por meio do aplicativo, que deve ser lançado pelo Ministério em outras regiões, é vista como um problema pelos especialistas.

"Existem tratamentos em pesquisa, mas os que estão sendo propostos nesse esquema de fato não funcionam. No entanto, muitos estados e profissionais têm optado por prescrevê-los. Isso é ludibriar a população e tirar o foco dos cuidados com aqueles que adoecem e das medidas de prevenção necessárias", disse o Dr. André.

"O que se deseja é que as pessoas confiem nas autoridades sanitárias do seu país. O contrário disso cria um embate extremamente danoso", observou o médico.

Na visão do Dr. José Carvalho de Noronha, o impacto da propaganda do tratamento precoce sobre os mais de 500 mil médicos é grande e prejudica o combate à pandemia.

"Muitos desses médicos estão atendendo pessoas com suspeita de covid-19 e vão levar em conta uma recomendação feita pelo Ministério da Saúde. Na prática do dia a dia, você não vai conferir uma recomendação do Ministério", disse o médico. Ele afirmou que a oferta de medicamentos para tratamento precoce pode se aproveitar da aflição crescente dos pacientes ligada ao avanço da pandemia.

"Aprendi, ainda na faculdade, que é muito difícil para os pacientes aceitarem que o médico não tem o que fazer e perguntam se não vai receitar nada. Diante dessas recomendações do Ministério da Saúde, o médico acaba receitando. Então, é um desastre, inclusive porque alguns desses remédios podem causar danos. E mais: dar a ilusão de segurança."

"O que mais temos visto nos hospitais são pessoas que têm usado ivermectina há meses ou no início da doença e mesmo assim estão chegando para serem internadas em enfermarias ou unidades de terapia intensiva", disse o Dr. André.

Para o Dr. José, o fato de o Conselho Federal de Medicina (CFM) não se posicionar sobre o tema colabora para a propagação da ideia equivocada de tratamento precoce. A entidade foi questionada em uma carta aberta divulgada no dia 14 de janeiro e assinada por cinco dos seus ex-presidentes e 14 ex-conselheiros federais.

"(...) Frente a essa eloquente omissão do nosso principal órgão representativo é que nós, ex-Presidentes do CFM e outros ex-Conselheiros Federais, conclamamos o CFM a que se manifeste publicamente em defesa da vida da nossa gente; em defesa do exercício de nossa profissão; e em defesa dos milhares de médicos e médicas, bem como de seus companheiros das equipes de saúde, que estão cumprindo os seus deveres profissionais e arriscando suas vidas", escreveram os ex-dirigentes.

O grupo pede que o CFM se manifeste a favor da vacinação com cobertura vacinal adequada, que enfatize a continuidade da adoção das outras medidas de controle reconhecidas cientificamente (como distanciamento físico, higiene pessoal e uso de máscaras) e exija das autoridades públicas as garantias de um atendimento correto e protetor para a população. Além disso, os autores solicitam que o CFM "oriente a população médica brasileira quanto ao adequado comportamento ético a ser adotado nesta pandemia, evitando o uso de condutas terapêuticas sem respaldo científico".

Procurado pelo Medscape para falar sobre o aplicativo o CFM não deu retorno até o fechamento desta reportagem.

Em coletiva de imprensa realizada na segunda-feira (18) no Palácio do Planalto, o ministro da Saúde foi questionado por jornalistas sobre o tratamento precoce, veementemente refutado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária durante aprovação das vacinas contra a covid-19, transmitida ao vivo por canais de televisão no domingo (17). Pazuello respondeu que o ministério orienta os pacientes a buscarem "atendimento precoce", e não "tratamento precoce" – contrariando o que o próprio MS divulgou em sua página oficial no Twitter, conforme mostrou reportagem do site G1.

"Não confundam atendimento precoce com que remédio tomar. Não coloquem isso errado. Nós incentivamos e orientamos que a pessoa doente procure imediatamente um médico. Que o médico faça o diagnóstico. Esse é o atendimento precoce. Que remédios vai prescrever, isso é foro íntimo do médico. O ministério não tem protocolos com isso, não é missão do ministério definir protocolo", afirmou o ministro.

Em nota divulgada no dia 19, a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) enfatizaram a importância da vacinação e condenaram a propaganda do tratamento precoce.

“As melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no ‘tratamento precoce’ para a covid-19 até o presente momento. Pesquisas clínicas com medicações antigas indicadas para outras doenças e novos medicamentos estão em pesquisa. Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil”, diz o texto.

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