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O anúncio [1] de uma nova variante do SARS-CoV-2 que estaria circulando em Manaus desde dezembro acrescentou ainda mais elementos ao temor geral com a situação pandêmica no Brasil e no mundo. Chamada de P1, a linhagem ostentaria uma constelação única de mutações de máxima importância.
"Parece ser de uma linhagem que tem a capacidade de transmissão em grande escala, e provavelmente a população de Manaus não está com imunidade para essa nova variante", resumiu ao Medscape a Dra. Ester Sabino, médica e professora da Universidade de São Paulo (USP) e uma das autoras da pesquisa que descreve a nova linhagem.
"Ninguém estava esperando que isso fosse acontecer tão rapidamente. O que estamos vendo em Manaus provavelmente vai ocorrer em outros lugares nos quais a população apresenta alta taxa de anticorpos e onde a transmissão continua a acontecer", especulou.
O alerta foi publicado em um fórum de discussão, análise e interpretação da evolução molecular e epidemiologia dos vírus. Não é uma publicação final, revisada por pares, mas este é um site respeitado, que permite a rápida divulgação dos dados.
"No próximo ano, teremos de enfrentar escolhas difíceis enquanto trabalhamos para achatar a curva de transmissão. E é por isso que precisamos que os líderes ajam de forma transparente, para que o público entenda suas decisões e as evidências científicas que estão por trás dessas decisões, para que possamos reunir as pessoas em torno de um plano compartilhado", disse Carissa F. Etienne, diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). [2]
Alguns países e regiões já tomaram medidas. O Reino Unido, por exemplo, proibiu o ingresso de passageiros vindos do Brasil a partir do dia 15 de janeiro (além de Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Ecuador, Guiana Francesa, Guiana, Paraguai, Panamá, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela, bem como de Portugal e Cabo Verde, por terem fortes ligações de viagem com o Brasil). Cidadãos britânicos, irlandeses ou com residência permanente na região poderão ingressar no Reino Unido, mas terão que se isolar imediatamente.
Uma história em ritmo acelerado
Foi no dia 06 de janeiro de 2021 que o National Institute of Infectious Diseases (NIID) do Japão anunciou o achado de uma nova variante "brasileira" do SARS-CoV-2, isolada das amostras de quatro viajantes. As amostras foram obtidas em 02 de janeiro na triagem do aeroporto de Tóquio, de passageiros vindos do Amazonas. O vírus estudado tinha 12 mutações, algumas encontradas em variantes que já haviam causado preocupação, circulando no Reino Unido e na África do Sul. [3]
"Ao longo do ano, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia estava fazendo a vigilância genômica do vírus que circula em Manaus. Tínhamos dados até novembro, e as novas análises estavam sendo realizadas", explicou ao Medscape a Dra. Paola C. Resende, PhD., pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), laboratório de referência nacional.
"Quando o Japão notificou e os dados foram liberados, a Fiocruz Amazônia e a Rede Genômica Fiocruz realizaram análises para reconstruir a história e avaliar de onde essas variantes surgiram. Os dados genômicos do Japão ficaram disponíveis no domingo e trabalhamos 24 horas direto para liberar nossas análises na segunda-feira. Foi ali que detectamos a linhagem que surgiu no Amazonas", disse ela, se referindo ao trabalho pioneiro. [4]
Linhagem é um grupo de amostras de vírus que têm alguma diferença em comparação com um padrão (no caso a amostra índice obtida em Wuhan) e estão ligadas entre si por veículos epidemiológicos (cepa é um termo genérico muito utilizado, mas inadequado). Os pesquisadores do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia) confirmaram a identificação da origem da nova variante da linhagem SARS-CoV-2 B.1.1.28 no Amazonas, e sugeriram que os vírus detectados nos viajantes japoneses já eram um novo grupo, mas que evoluíram da B.1.1.28, que já circulava no Amazonas. Os achados apontam que seria um fenômeno recente, provavelmente ocorrido entre novembro e dezembro de 2020.
"A linhagem é bem preocupante e não foi detectada ainda em nenhum outro estado do país. Estamos monitorando para verificar a dispersão no estado do Amazonas e a presença da variante em diferentes estados do país", observou a Dra. Paola, que participou do trabalho.
Muitas perguntas, algumas sem resposta
1. O que aconteceu com a imunidade de rebanho? Houve reinfecção?
Um trabalho dirigido pela Profa. Ester e divulgado esta semana no periódico Science mostra que, em junho de 2020, um mês após o pico epidêmico em Manaus, 44% da população tinha imunoglobulina G (IgG) contra o SARS-CoV-2 detectável no sangue. Corrigindo para os casos sem resposta imunológica detectável e para aqueles com diminuição de anticorpos, os autores estimaram ainda uma taxa de ataque maior (66%), subindo para 76% em outubro. [5]
"O que a situação atual em Manaus mostra é que: ou a imunidade populacional não é duradoura ou que essa nova cepa consegue escapar da proteção gerada por anticorpos anteriores", disse a Profa. Ester ao Medscape.
O fato é que, desde meados de dezembro de 2020, houve um rápido aumento no número de casos e internações. No dia em que circulava no mundo a informação de que os pacientes internados com covid-19 em Manaus estavam morrendo sufocados nos hospitais por falta de oxigênio, a Profa. Ester falava para o Medscape que o crescimento acelerado da infecção provavelmente estava associado a uma nova variante.
Como já foi explicado, a reinfecção é muito difícil de ser comprovada em casos individuais, mais ainda como causa do aumento do número de casos; porém, é essencial que seja investigada rapidamente, concluíram os pesquisadores.
"Houve reinfecção no Amazonas associada a essa linhagem", respondeu a Dra. Paola referenciando um informe publicado em 13 de janeiro pelo Ministério da Saúde. [7]
2. A nova linhagem produz doença mais grave? É mais transmissível?
De acordo com a Profa. Ester, a nova linhagem é tão preocupante como a identificada no Reino Unido e na África do Sul.
"Até o momento não sabemos se a nova linhagem está causando os casos graves. Também não se sabe se é altamente transmissível, ainda estamos avaliando", respondeu a Dra. Paola.
Diante das incertezas da ciência, motivos para preocupação não faltam. Esta nova linhagem tem quase 20 mutações novas e, entre elas, os cientistas encontraram a mesma mutação associada a uma maior transmissibilidade na Inglaterra e a mesma presente na linhagem detectada na África do Sul, que diminui a resposta a anticorpos neutralizantes. Uma delas, a mutação E484K, de fato já está circulando por todo o Brasil, como já foi noticiado pelo Medscape .
3. As vacinas ainda vão proteger?
"Agora é o momento em que as pessoas que trabalham com vacinas têm de entender as respostas dos anticorpos e avaliar a capacidade neutralizante dos que já tomaram vacina", respondeu a Profa. Ester.
"Estão sendo realizados testes laboratoriais para tentar entender se estas novas linhagens vão permitir o escape da resposta obtida após a vacinação", respondeu a Dra. Paola.
4. A linhagem detectada no Brasil veio de outro país?
Não parece. As evidências sugerem mudanças seletivas convergentes na evolução do SARS-CoV-2 devido a pressão evolutiva durante o processo de infecção de milhões de pessoas. [6]
5. O vírus está mutando mais rápido?
De acordo com as evidências atuais, o ritmo de surgimento de mutações não teria mudado. O que, segundo a Profa. Ester, poderia estar acontecendo é que cepas com capacidade de escapar do sistema imune estariam sendo selecionadas, talvez justamente por conta de a população ter adquirido anticorpos.
Os dados ainda devem ser interpretados com cautela, pois o tamanho das amostras é limitado. Um dos trabalhos se baseia na sequência de 37 amostras coletadas de pacientes que buscaram triagem por transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR, sigla do inglês, Reverse Transcription Polymerase Chain Reaction) no setor privado entre 15 e 23 de dezembro de 2020, e a linhagem P1 com uma assinatura geneticamente distinta foi identificada em 13 deles. É considerada como uma linhagem nova, porque não tinha sido achada nas amostras de vigilância de genomas disponíveis publicamente coletadas em Manaus entre março e novembro de 2020.
6. O que fazer diante deste cenário?
A epidemia de SARS-CoV-2 no Brasil foi dominada até agora por duas linhagens (B.1.1.28 e B.1.1.33), que provavelmente surgiram no país em fevereiro de 2020, antes das restrições de viagem. Relatórios publicados ao longo da pandemia chamam atenção para o surgimento de mais de uma dúzia de novas variantes. O sequenciamento adicional de genomas da região e do país agora é criticamente necessário para investigar a frequência da nova variante ao longo do tempo, estimar sua data de emergência e inferir taxas de crescimento populacional.
O sequenciamento adicional também ajudará a monitorar a transmissão local de outra linhagem epidemiológica relevante, a B.1.1.7, que foi descoberta no Reino Unido no início de dezembro de 2020 e já foi detectada no Brasil.
"O problema maior é que o surgimento dessas linhagens pode estar acontecendo em lugares diferentes, mas escapando do monitoramento", ressaltou a Profa. Ester. "Em uma ou duas semanas teremos os dados de diferentes regiões, de onde estamos recebendo as amostras agora", complementou a Dra. Paola.
Pesquisadores da Fiocruz, em parceria com a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS/AM) e o com o Laboratório Central de Saúde Pública do Amazonas (Lacen-AM), estão conduzindo um levantamento genômico de indivíduos recém- infectados pelo SARS-CoV-2 no Amazonas, com o objetivo de detectar a circulação dessa linhagem no estado. O mesmo trabalho está sendo feito nas outras redes de vigilância genômica. O Ministério da Saúde tem três centros: o Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do IOC/Fiocruz, que é referência nacional; o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo; e o Instituto Evandro Chagas, em Belém do Pará. E, a partir desta semana, a Rede Genômica Fiocruz vai divulgar as informações sobre o número de genomas sequenciados e linhagens detectadas em cada estado.
Até o dia 15 de janeiro de 2021 a nova linhagem P1 só tinha sido detectada em Manaus e nos quatro viajantes que retornaram ao Japão. O pior cenário não é inevitável.
"Não sabemos como vai ser o comportamento da linhagem, ela pode se espalhar ou ter apenas circulação local. Às vezes o próprio comportamento do vírus não se adapta à população para se dispersar, mas para saber isso precisamos monitorar", resumiu a Dra. Paola.
Mas, se as mutações conferem alguma vantagem seletiva para a transmissibilidade viral, devemos esperar um aumento da frequência da linhagem no Brasil e no mundo nos próximos meses.
O fechamento de fronteiras é uma questão sanitária, com peso político, que não foi avaliada pelas especialistas consultadas, mas elas concordaram que, para evitar que o vírus se espalhe, é preciso redobrar as medidas de prevenção – neste quesito não há novidades. A infecção por qualquer linhagem do vírus pode ser prevenida por meio de higienização constante das mãos, uso de máscara, distanciamento físico (evitando aglomerações) e uso de equipamentos de proteção individual durante o atendimento aos pacientes.
A Dra. Paola Resende e a Profa. Ester Sabino informaram não ter conflitos de interesses.
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Citar este artigo: Covid-19: A variante do Brasil no olho do furacão - Medscape - 15 de janeiro de 2021.
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