SARS-CoV-2: entenda caso de reinfecção por nova variante identificado na Bahia

Roxana Tabakman

Notificação

12 de janeiro de 2021

Nota da editora: Veja as últimas notícias e orientações sobre a covid-19 em nosso Centro de Informações sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2.

Na última quinta-feira (7), o triste dia em que o Brasil superou a marca das 200.000 mortes por covid-19, uma outra notícia vinda da Bahia gerou preocupação: foi divulgado, por meio de uma plataforma de estudos em pre-print, o que seria o primeiro caso de reinfecção naquele estado, com o agravante de ser causado por uma linhagem nova e ter a mutação E484K. [1]

A mutação, localizada no gene da proteína da espícula (spike, em inglês) do vírus – que forma a estrutura de coroa que dá nome à família dos coronavírus e é responsável pela ligação do micro-organismo com a célula humana – hoje é foco das atenções por ter sido associada ao desenvolvimento de mutações que escapam dos anticorpos neutralizantes. O cenário em que o vírus possa resistir tanto à resposta imunitária formada em infecções prévias, quanto às vacinas será uma preocupação provavelmente recorrente nas muitas das linhagens novas que possam surgir.

“Essa mutação está no centro da preocupação mundial e é a primeira vez que aparece em uma reinfecção” – explicou ao Medscape o primeiro autor do estudo, o Dr. Bruno Solano de Freitas Souza, médico e pesquisador da unidade regional Salvador do Instituto D'Or de Ensino e Pesquisa, sediado no Hospital São Rafael.

“Aguardaremos a amostra da Bahia para confirmar o caso dentro da perspectiva da rede de vigilância do Ministério da Saúde” – disse o Dr. Fernando Motta, vice-chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que atua como Centro de Referência Nacional em vírus respiratórios junto ao Ministério da Saúde (MS) e como referência para a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O caso

A paciente que fez soar o alarme foi uma mulher de 45 anos e sem comorbidades, executiva do setor de saúde. A equipe vinha acompanhando profissionais de saúde e pacientes que tinham apresentado teste por transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR, sigla do inglês Reverse Transcription Time Polymerase Chain Reaction) positivo mais de uma vez, para entender se eram casos de persistência viral prolongada ou novas infecções.

A mulher apresentou sintomas de infecção viral em duas ocasiões (26 de maio e 26 de outubro) ambas com resultados positivos para SARS-CoV-2 nos testes de RT-PCR em amostras nasofaríngeas. No primeiro episódio, a paciente teve um quadro com diarreia, mialgia, astenia e odinofagia por aproximadamente sete dias e voltou às atividades 21 dias depois, sem sequelas. O segundo foi sintomaticamente mais grave e com uma duração maior, mas também não necessitou internação.

“Foi o primeiro caso de reinfecção confirmado na Bahia, e observamos no segundo episódio uma mutação que poderia ter impacto na capacidade dos anticorpos de neutralizar o vírus. A pesquisa continua com a investigação dos casos em que o paciente apresente RT-PCR positivo para SARS- CoV- 2 mais de uma vez em um intervalo maior do que 45 dias, para termos um nível de evidência maior”, disse o Dr. Bruno, salientando que “é muito importante reforçar as medidas de controle da pandemia, distanciamento social, uso de máscaras, e acelerar a vacinação para poder controlar a circulação do vírus, e ao mesmo tempo ir monitorando a evolução dele.”

Reinfecções

É considerado caso suspeito de reinfecção o indivíduo com dois resultados positivos por meio da técnica de RT-PCR em tempo real para o SARS-CoV-2, com intervalo igual ou superior a 90 dias entre os dois episódios de infecção respiratória, independentemente da condição clínica observada nos dois episódios. Para confirmação do caso suspeito as amostras devem ser encaminhadas aos laboratórios de referência conforme fluxo estabelecido pelo Ministério da Saúde.

Uma profissional da saúde residente em Natal foi o primeiro caso confirmado no Brasil de reinfecção pelo novo coronavírus, anunciado no 10 de dezembro.

“Comunicamos este caso de reinfecção ao MS no começo de dezembro de 2020. E a segunda amostra já apresentava a mutação E484K na spike, como no caso da Bahia”, informou o Dr. Fernando.

O primeiro passo para diferenciar reinfecção de persistência é observar diferenças na genotipagem do vírus. Para que a técnica seja bem-sucedida, explicou o Dr. Bruno, é preciso uma quantidade grande de material genético viral na amostra, o que não é frequente.

“Por isso há muitos mais casos suspeitos do que confirmados”, explicou o pequisador, admitindo que, embora até o momento sejam poucos casos, “fica cada vez mais claro que a reinfeção é uma realidade”.

Mutações

O que mais preocupou os pesquisadores não foi apenas a possibilidade de reinfecção, mas o fato de as análises preliminares mostrarem uma mutação em particular.

“A mutação E484K está presente um grupo de variantes identificadas na África do Sul que foram associadas ao aumento da infectividade, e foi observada como ocorrendo em uma linhagem recentemente descrita no Brasil”, disse o Dr Bruno.

Mutações são esperadas, surgem espontaneamente e, na maioria das vezes, não têm efeitos na transmissão nem afetam o desfecho clínico – são simplesmente utilizadas como marcadores, úteis para rastreamento de contato ou para estudar as rotas de transmissão. Algumas podem se fixar por apresentarem alguma vantagem, mesmo que momentânea, para o patógeno. No caso do SARS-CoV-2, mutações no gene da proteína S (espícula ou, em inglês, spike) têm relevância porque podem indicar alguma vantagem ao vírus, mas com possíveis consequências para infectividade, potencial de transmissão, anticorpos e resposta a vacinas. [2]

Uma variante de vírus com oito alterações que afetam a proteína S – e várias outras em outros genes – estaria por trás do aumento dos números de casos em Londres e no sudeste da Inglaterra. [3] Pesquisadores das faculdades de Medicina (FMRP) e de Odontologia (FORP) da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, identificaram um dos fatores que tornaram mais infecciosa esta nova variante classificada como B.1.1.7. Por meio da aplicação de ferramentas de bioinformática, eles constataram que a proteína S da nova cepa viral estabelece maior força de interação molecular com o receptor ACE2, presente na superfície das células humanas e com o qual o vírus se liga para viabilizar a infecção. [4] A variante já se espalhou para o resto do mundo, e os primeiros dois casos foram confirmados no Brasil pelo Instituto Adolf Lutz.

O alerta de uma nova variante na África, com semelhanças à B.1.1.7 do Reino Unido, pois carrega nove alterações na proteína S na posição 501 – foi feito pelo brasileiro Tulio de Oliveira. [5]

“Descobrimos que essa linhagem parece estar se espalhando muito mais rápido”, disse à revista Science[6] o Dr. Tulio De Oliveira, PhD., virologista da Universidade de KwaZulu Natal, cujo trabalho primeiro alertou os cientistas britânicos sobre a importância da posição N501Y.

“As novas variantes recém descritas no Reino Unido e na África do Sul são ligeiramente mais transmissíveis, e já foram identificadas em casos importados no Brasil. Infelizmente, acreditamos que seja apenas uma questão de tempo para que se torne autóctone”, afirmou o Dr. Fernando.

A família viral cresce

Vírus como o SARS-CoV-2 são classificados em linhagens por pequenas diferenças em seu material genético. Desde o passado 26 de dezembro, além das variantes britânica e sul-africana, também está sendo discutida a existência de uma linhagem carioca (P.2).

Revelada por um trabalho divulgado em plataforma preprint [7] a pesquisa é assinada em conjunto por membros de duas instituições de prestígio, a Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) e o Laboratório Nacional de Computação Científica. A publicação analisa a evolução da epidemia no Rio de Janeiro desde o início até pouco antes do novo aumento da incidência, em dezembro, e compara as sequências completas do genoma viral de 180 pacientes de diferentes municípios. O estudo identifica uma nova variante de SARS-CoV-2 com cinco mutações exclusivas (originárias de uma das linhagens predominantes). A preocupação veio porque, além daquelas cinco alterações genéticas, muitas das amostras tinham uma sexta, a já célebre mutação E484K.

“As três linhagens – do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil – foram publicações quase sincrônicas, mas não há evidências claras de que tenham qualquer tipo de ancestralidade comum” – disse ao Medscape a primeira autora do trabalho, a Dra. Carolina M. Voloch, PhD., bióloga e pesquisadora do laboratório de Virologia molecular e professora associada do Departamento de Genética da UFRJ.

A pesquisa da Dra. Carolina se concentra no uso de ferramentas de bioinformática para estudar a evolução molecular, filogenética e genômica dos vírus.

“O surgimento de novas linhagens é comum para os vírus. Pode estar acontecendo em qualquer lugar do mundo em qualquer momento.”

A pesquisadora reforça que é preciso entender a ordem cronológica da acumulação das mutações para definir cada vez melhor a nova linhagem brasileira. Acrescenta que há trabalhos sendo desenvolvidos para verificar se os anticorpos neutralizantes de pessoas que foram infectadas com outras linhagens respondem a essa linhagem carioca.

“Esperamos em breve estar compartilhando esses resultados”.

Os autores do trabalho pioneiro estimam que a nova linhagem deve ter surgido no início de julho, e destacam que novas análises são necessárias para prever se as mudanças têm um efeito importante sobre a infectividade viral, a resposta imune do hospedeiro ou a gravidade da doença. Perguntada sobre a linhagem que causou a reinfecção da Bahia, a Dra. Carolina disse que ainda não havia contatado os autores para fazer uma análise conjunta, mas esclarece que pelos dados divulgados no pre print não se trataria da mesma variante.

“Só tem duas das cinco mutações que caracterizam a linhagem do Rio de Janeiro. No entanto tem a mutação E484K que está presente em mais de 94% das amostras da nova variante do Rio.”

De acordo com a Dra. Carolina, “é cedo para entrar em desespero”, mas todos os cuidados devem ser tomados, por conta da possibilidade de reinfecção por essa linhagem que está circulando no Rio de Janeiro e em outros estados e países como EUA, Reino Unido e Japão.

“O vírus carioca está sendo exportado ao resto do mundo.”

Pouco conhecimento sobre a diversidade brasileira

Agora se sabe que o SARS-CoV-2 provavelmente circulou silenciosamente no país já em fevereiro de 2020 e atingiu todas as regiões brasileiras antes da implementação de restrições de viagens aéreas. Desde o primeiro semestre do 2020, há duas linhagens predominantes. [8,9]

“Desde o começo da pandemia, mais de uma dezena de linhagens já foi identificada no Brasil, porém mais importante do que contar linhagens, é identificar a velocidade com elas surgem – o que está diretamente associado à taxa de infecção, que está muito alta no país”, ponderou o Dr. Fernando.

Sobre a chamada “variante carioca”, o especialista afirmou que “a variante inicialmente descrita no estado de Rio de Janeiro também está presente em outros estados de quatro regiões do Brasil. Se quisermos precisar o local e a data de surgimento da variante necessitamos de uma amostragem mais representativa com genomas do segundo semestre de 2020 de outras partes do país.

A dificuldade de alcançar consenso acadêmico pode se dever também às mudanças que aconteceram nos sistemas classificação. O documento feito público pela OMS em 8 de janeiro [10] indica que não há uma única nomenclatura. Com a crescente diversidade nos genomas, e para “resolver” o problema, a OMS recomenda ainda usar simultaneamente os três sistemas que existem.

Conhecer em profundidade a “família do SARS-CoV-2”, portanto, não é tarefa simples. Até o dia 10 de janeiro, um total de 347.000 sequências completas de genomas já foram compartilhadas por meio de bancos de dados abertos desde a identificação inicial do SARS-CoV-2, mas a contribuição dos países é desigual. Embora o custo e a complexidade do sequenciamento genético tenham caído significativamente ao longo do tempo, programas eficazes de sequenciamento ainda exigem investimentos substanciais em termos de pessoal, equipamentos, reagentes e infraestrutura bioinformática. Além disso, é necessário uma colaboração eficaz para garantir que os dados gerados sejam de boa qualidade e sejam usados de forma significativa. [10]

De acordo com a Dra. Carolina, só será possível combater o novo coronavírus conhecendo a diversidade dele e entendendo como ele evolui. A Fiocruz disponibiliza em forma aberta um infográfico onde é possível acompanhar as linhagens que estão circulando no Brasil. Ele é resultado da colaboração entre os pesquisadores da Rede Genômica Fiocruz e da GISAID Initiative, uma iniciativa internacional que promove o rápido compartilhamento de dados.

“O mundo deve se preocupar com a variante carioca, inglesa e sul-africana, assim como com as outras variantes que não sabemos que existem porque não está sendo feito o trabalho de vigilância genômica em diversos lugares do mundo”, disse a pesquisadora.

Todos os pesquisadores consultados para esta matéria concordam que os 1.897 genomas estudados até agora no Brasil (dados da atualização 5 de janeiro 2021) é pouco. O país, sustentam, precisa sequenciar mais.

“No Brasil se testa pouco e se sequencia menos ainda”, lamentou o Dr. Bruno.

“No Reino Unido sequenciam um de cada 600 casos, no Brasil é menos de um em cada 10 mi casos”, acrescentou a Dra. Carolina.

“A quantidade é pequena especialmente se você retirar da conta vários sequenciamentos da má qualidade, que não são usados em análises robustas”, lembrou o Dr. Fernando Motta.

De acordo com ele, uma melhor representatividade das regiões do país e a qualidade dos sequenciamentos produzidos são fatores mais importantes do que o número absoluto de sequências. Mas o sequenciamento genômico é uma técnica cara, que requer mão de obra altamente especializada e estrutura computacional.

“A escolha em investir mais ou menos depende em qualquer lugar do mundo da divisão dos recursos finitos dos Ministérios da Saúde. É uma decisão do quanto pode ser aplicado nas redes de acompanhamento da evolução do vírus, e o que fazer com estes dados.”

Até agora, nenhum fator decisivo para saúde pública, como maior virulência ou maior transmissibilidade, foi identificado em nenhuma das linhagens estabelecidas no Brasil. A pergunta de um milhão de dólares é se o surgimento de novas linhagens pode ter na eficácia das vacinas que estão sendo administradas atualmente. [11] Mas a resposta imune a uma infecção viral é complexa e não está restrita à produção de anticorpos, e nem a uma determinada região do vírus. É importante considerar também que a tecnologia genética utilizada para produção de algumas das vacinas disponíveis hoje facilita uma eventual adaptação desses imunizantes frente a essas diferentes alterações do vírus.

“Até o momento, as variantes se encontram bem cobertas pelas vacinas planejadas. Mas não é possível conhecer em detalhes a resposta produzida pelas vacinas até termos os dados pós-vacinação”, completou o Dr. Fernando.

Onde se escondem os riscos

“Quanto mais gente infectada, temos mais vírus sendo transmitidos e replicados. Quanto mais vírus replicados, maior a chance do surgimento de mutações, e de algumas destas mutações se estabelecerem na população”, explicou o Dr. Fernando. Mas também essa afirmação não tem consenso.

“Em lugares onde a epidemia está descontrolada podem surgir novas variantes mais facilmente do que em lugares onde a epidemia está controlada. É uma possibilidade, mas não necessariamente uma verdade”, acrescentou a Dra. Carolina. “O vírus pode sofre mutação em locais com epidemia controlada, não há como prever.”

Ela chama atenção para as possíveis consequências do fenômeno da persistência viral na evolução do SARS-CoV-2, algo observado em muitos pacientes, e concretamente nos profissionais de saúde.

“Um trabalho de nosso grupo já submetido para publicação encontrou em uma coorte com profissionais de saúde que a proporção dos infectados que desenvolvem infecção persistente chega a quase 30%. São pessoas saudáveis que podem desenvolver infecção persistente. E quanto mais tempo o vírus fica no organismo ao longo do tempo mais vai acumulando mutações. Isso pode fazer com que surjam novas linhagens.”

Poderia ser pior

Uma das afirmações que se faz desde o início da pandemia é que a sorte da humanidade é que os coronavírus são relativamente estáveis. Isso mudou? A Dra. Carolina afirma que não.

“Em absoluto, o SARS-CoV-2 é sim um vírus estável e a taxa de mutação permanece a mesma que a esperada desde o início.”

O Dr. Fernando também oferece uma certa tranquilidade quando afirma que não houve alteração na taxa de evolução das linhagens predominantes no país – mas em seguida alerta que os dados para este tipo de análise ainda são escassos.

“De um modo ou de outro a vacina é a nossa melhor aposta sempre, mesmo que no futuro identifiquemos mutantes escapistas e tenhamos de modificá-la. É o que fazemos anualmente com o Influenza.”

Os Drs. Carolina Voloch, Fernando Motta e Bruno Solano de Freitas Souza declaram não ter conflito de interesses.

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