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No dia 22 de maio, um homem de 69 anos foi hospitalizado na área covid-19 do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). O paciente, que fazia acompanhamento para doença de Chagas sem patologia comprovada, apresentava problemas respiratórios. Uma semana depois, uma mulher de 74 anos com cardiomiopatia crônica por doença de Chagas foi internada com sintomas associados a covid-19. Após uma rápida progressão da doença, os dois morreram.
"Acreditamos que a doença de Chagas possa ser um importante e subestimado fator de risco de covid-19 grave, especialmente para aqueles com doença de Chagas crônica e cardiomiopatia, que podem apresentar maior probabilidade de desfechos ruins", alertaram os autores do que é, talvez, um dos primeiros relatos de caso de pacientes com doença de Chagas e covid-19 concomitantes. [1]
O alerta é para as áreas endêmicas com infecção por doença de Chagas subnotificada e/ou subnotificação da infecção por SARS-CoV-2 – situação que abarca toda a América Latina.
Segundo o epidemiologista Dr. Sergio Sosa-Estani, Ph.D., diretor do Programa Clínico de Chagas da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla do inglês, Drugs for Neglected Diseases initiative), os portadores de Trypanosoma cruzi já não residem apenas nas regiões rurais, eles também "estão nas cidades grandes, às vezes porque migraram, outras porque são filhos ou netos de mãe infectada, ou porque foram contaminados com o parasita por transfusão sanguínea antes dos protocolos de controle do sangue, que começaram no final dos anos 70".
As comorbidades tornam os dois grupos de pacientes vulneráveis. Assim como em pacientes com covid-19 grave, vários estudos descrevem altos níveis de comorbidades em pacientes com doença de Chagas. Um estudo brasileiro identificou uma média de 2,7 comorbidades crônicas em pacientes com doença de Chagas. [2] Dentre 168 pacientes com doença de Chagas em São Paulo, 51,2% tinham hipertensão e 23,8% tinham diabetes. [3] Essas comorbidades também refletem a idade mais avançada das populações que são especialmente impactadas pela doença de Chagas e pela covid-19.
Alerta amarelo ou vermelho
Se no momento da admissão hospitalar o paciente com covid-19 tiver infecção por T cruzi. sem patologia comprovada, deve-se acender uma luz amarela, mas caso ele tenha doença de Chagas com patologia confirmada, essa luz deve ser vermelha, resumiu o Dr. Sergio a pedido do Medscape.
O Dr. Álvaro Avezum, cardiologista e diretor do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, que conduz ensaios clínicos sobre covid-19 e doença de Chagas, concorda: "Muita atenção nessa hora. Qualquer paciente com doença cardiovascular é de risco maior quando contrai covid-19. Se o comprometimento cardíaco ocorrer por conta da doença de Chagas, teremos duas situações; a questão cardiovascular e a doença imune da doença de Chagas."
A covid-19 tem sido associada a múltiplas manifestações cardíacas, que incluem arritmias, infarto do miocárdio, exacerbações de insuficiência cardíaca e miocardite fulminante. Possíveis complicações entre covid-19 e cardiopatia chagásica podem ser esperadas, principalmente devido às vias imunológicas comuns compartilhadas por ambas as doenças, como a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2), que está envolvida na função cardíaca e no desenvolvimento de hipertensão arterial e diabetes, fatores de risco frequentemente observados em pacientes com cardiopatia chagásica. Entre as questões a serem estudadas está a ligação entre a inflamação causada pela covid-19 e a causada pela doença de Chagas.
Indivíduos com doença de Chagas podem ter progredido para uma forma cardíaca da doença sem saber. "O acometimento cardíaco da doença de Chagas ocorre em pessoas jovens, que podem ser absolutamente saudáveis e não ter risco de cardiopatia por T. cruzi. Há casos de morte súbita de pessoas jovens com T. cruzi sem sintomatologia prévia. A nossa preocupação agora é como pode seguir a coinfecção? Poderia acelerar o processo de manifestação cardíaca? Seria desencadeante de um desenlace fatal?" indagou o Dr. Sergio.
"Se um paciente tem alterações de coagulação causadas pela covid-19 e tem cardiopatia chagásica inicial, o risco de tromboembolia pode estar aumentado. Teme-se também que a tormenta imunológica possa ativar um parasita que até então estava em equilibro com seu hospedeiro e alterar o curso da doença."
Outro aspecto preocupante são as possíveis sequelas da covid-19; "não apenas as cardíacas, mas a fibrose pulmonar é capaz de produzir um grau de resistência à circulação pulmonar que pode causar sobrecarga no coração e complicar a evolução de uma cardiopatia chagásica", acrescentou o Dr. Sergio.
O Dr. Sergio liderou um grupo de especialistas em doença de Chagas e doenças cardíacas que avaliou as informações disponíveis e chegou a um consenso, que acaba de ser publicado no periódico Global Heart.[3] Foram estudados, entre outras questões, os dados sobre o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, inibidores de protease (ritonavir, liponavir), azitromicina, atazanavir, ivermectina, entre outros. Diante do comprometimento cardíaco causado pela covid-19, somado ao causado pela doença de Chagas, "o que se faz é tratar as duas condições, sabendo que podem haver interações medicamentosas. Mas ainda temos poucas evidências científicas. Por isso o artigo é útil, porque traz um guia, uma recomendação com o estado atual do nosso conhecimento", avaliou o Dr. Álvaro, que não participou da redação do artigo.
Pacientes com as duas doenças podem receber terapia imunossupressora, mas recomenda-se um acompanhamento rigoroso para diagnosticar a reativação da doença de Chagas no início do curso. No caso de evidência clínica e/ou parasitológica de reativação, deve-se iniciar o tratamento com benzonidazol ou nifurtimox. Em caso de uso de benzonidazol e nifurtimox em combinação com medicamentos para tratar a covid-19, a hepatotoxicidade e a função hematológica devem ser monitoradas.
Podem ocorrer interações medicamentosas em pacientes com cardiopatia chagásica sendo tratados para arritmias cardíacas, como fibrilação atrial ou arritmias ventriculares, com risco de vida que recebem amiodarona, em função do potencial aumento do intervalo de QT associado aos tratamentos propostos para a covid-19.
O Dr. Sergio acredita que realizar a sorologia para T. cruzi no momento da admissão hospitalar de pacientes com covid-19 pode ajudar a orientar o atendimento.
"Se o paciente tem cardiopatia, é importante saber a causa. Se não tiver cardiopatia, é bom ter o conhecimento, porque não sabemos se o parasita pode se reativar de forma grave."
Pacientes com doença de Chagas na pandemia
Dependendo da situação epidemiológica, os médicos precisam ponderar os riscos e os benefícios de encaminhar um paciente com doença de Chagas em fase crônica indeterminada (o que pode durar anos ou décadas) para um centro de saúde. O médico precisa saber quando iniciar ou postergar o início de um tratamento, ou prescrever um fármaco sobre o qual tem dúvida quanto a potenciais interações medicamentosas.
Na opinião do grupo de trabalho, formas agudas da doença de Chagas geralmente justificam tratamento antiparasitário o mais cedo possível, mesmo no contexto da pandemia. O tratamento antiparasitário continua sendo necessário se, além da doença de Chagas, o paciente tiver covid-19 – mas os médicos devem ficar atentos à gravidade dos sintomas da infecção causada pelo SARS-CoV-2.
No caso da transmissão congênita, a criança infectada, mas sem sintomas de covid-19, deve receber tratamento antiparasitário assim que o diagnóstico da infecção por T. cruzi for estabelecido.
Em outros casos, o tratamento antiparasitário pode ser adiado até que o paciente possa frequentar o hospital com segurança, no entanto, a reativação da doença de Chagas com sinais em órgãos-alvo deve ser acompanhada de perto. Os pacientes em reativação devem ser internados e receber tratamento antiparasitário por 60 dias, anti-histamínicos e/ou anti-inflamatórios. A reativação envolvendo miocardite/meningoencefalite é de particular preocupação, devendo ser cuidadosamente monitorada na unidade de terapia intensiva.
Se um paciente já estiver recebendo benzonidazol ou nifurtimox, o tratamento deve ser continuado com as devidas medidas de isolamento. Os pacientes com cardiopatia chagásica devem continuar seus tratamentos habituais durante a pandemia. Não há nenhuma evidência até o momento para apoiar a descontinuação de inibidores da ECA e/ou bloqueadores de receptores da angiotensina (BRA) com base na hipótese de aumento da suscetibilidade à infecção pelo SARS-CoV-2.
As indicações para triagem e diagnóstico de doença de Chagas não foram alteradas, mas a urgência depende do grau em que o diagnóstico da doença de Chagas afetará a gestão de curto prazo do indivíduo. Gestantes, bebês nascidos de mães soropositivas, pacientes com síndromes clínicas sugestivas de doença de Chagas e qualquer indivíduo que receberá iminentemente imunossupressão deve ser testados para orientar avaliação e terapia.
O uso de ferramentas para consulta virtual é altamente recomendado. Para os pacientes com doença de Chagas, a ida às unidades de saúde seria indicada principalmente para a realização de exames, priorizando a realização das consultas por meio de telemedicina. A equipe de saúde do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, centro nacional de referência para diagnóstico e tratamento de doenças infecciosas, que atende regularmente mais de 1.000 pacientes com doença de Chagas crônica sob tratamento integral, iniciou atendimento telefônico para todos os pacientes com cardiomiopatia chagásica crônica inscritos no programa de reabilitação cardiovascular antes da pandemia covid-19.
A equipe estabeleceu um questionário e organizou uma escala de serviço para contatar os pacientes. Além de fornecer orientações gerais sobre cuidados de saúde durante a pandemia, a equipe preenche um questionário que permite coletar informações gerais e detectar mudanças significativas e presença de sintomas.
"Acreditamos que essa estratégia de suporte telefônico pode ajudar, pelo menos em parte, na manutenção da assistência integral aos nossos pacientes, e pode nos alertar para sinais precoces e sintomas de descompensação, proporcionando a oportunidade de intervenção antes que os pacientes precisem de internação." [5]
Incertezas
A compreensão das possíveis relações entre a doença de Chagas e a covid-19 ainda é limitada. Há muitas lacunas no conhecimento sobre os cuidados em relação ao tratamento da covid-19 em pacientes com doença de Chagas, riscos hemodinâmicos e eletrofisiológicos da covid-19 em pacientes com cardiopatia chagásica, efeitos antivirais de antiparasitários, influência dos anti-inflamatórios e impacto da terapia anticoagulante nas duas doenças. Tratamentos cardiovasculares de doença de Chagas, como amiodarona, podem tratar a covid-19? A tempestade de citocina pode desencadear reativação parasitaria ou progressão da doença? Há reação cruzada entre as vias de resposta imune, viral e parasitária? O estado pró-trombótico de ambas as doenças se comporta sinergicamente? O estado inflamatório crônico da doença de Chagas agrava o quadro de covid-19?
Em resumo, ainda não se sabe como a história natural das duas doenças é afetada pela coinfecção, "a priorização da atenção à pandemia de covid-19 não deve tirar a atenção de outros problemas que afetam a nossa população, especialmente as doenças negligenciadas, das quais a de Chagas é a mais relevante na região", concluiu o Dr. Sergio.
Os Drs. Sergio Sosa-Estani e Álvaro Avezum informaram não ter conflitos de interesses.
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Citar este artigo: Covid-19 e doença de Chagas: Alerta vermelho - Medscape - 25 de novembro de 2020.
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