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Este é o primeiro de uma série de artigos elaborados pelo Medscape Professional Network pela edição Estados Unidos e pelas edições Reino Unido, Espanha, França, Alemanha e Brasil, nos quais oncologistas que atuam nesses países compartilham suas perspectivas sobre assuntos atuais da especialidade.
Consultas canceladas, cirurgias adiadas e diagnósticos tardios de câncer – esta foi a receita para levar os oncologistas à exaustão em todo o mundo, lutando para contatar e tratar seus pacientes durante a pandemia. Os médicos e suas equipes sentiram o impacto da primeira onda da covid-19 ao redor do mundo.

Dr. Axel Kahn
"Vimos a angústia das pessoas com câncer que não conseguiam mais acessar ninguém por telefone. Muitas vezes a consulta médica havia sido cancelada. A sessão de radioterapia adiada ou modificada e a quimioterapia adiada", disse o Dr. Axel Kahn, médico e presidente do conselho de diretores da La Ligue Nationale Contre le Cancer, na França. "Na grande maioria dos casos, o tratamento do câncer pode ser adiado ou ajustado, sem afetar as chances de sobrevida do paciente, mas houve muita ansiedade, porque os pacientes não sabem disso."

Dr. Benjamin Domingo-Arrué
O fator ficar em casa foi aquele que durou muitos meses durante a primeira onda.
"Acredito que a mensagem de 'fique em casa' que transmitimos foi rigorosamente seguida pelos pacientes que deveriam ter buscado atendimento de emergência muito mais cedo e que, portanto, foram internados com um estado geral muito mais deteriorado do que em tempos sem covid-19", disse o Dr. Benjamin Domingo-Arrué, médico do Departamento de Oncologia Médica do Hospital Universitari i Politècnic La Fe, na Espanha.
E, no Brasil, parte do impacto inicial da covid-19 na oncologia está sendo sentido só agora, de acordo com a Dra. Laura Testa, oncologista e pesquisadora do IDOR e chefe do Departamento de Oncologia da Mama do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
"Estamos começando a ver muitos casos de câncer que não apareceram no início da pandemia, mas agora estão chegando em estágios avançados", disse ela. "Esses pacientes precisam de atendimento hospitalar. Se a situação piorar e voltar ao que vimos no pico da curva, temo que o sistema público não seja capaz de tratar adequadamente os pacientes oncológicos que precisam de atendimento hospitalar e os pacientes com câncer que também têm covid-19."
Mas mesmo que a fadiga e as preocupações dos profissionais de saúde persistam, os oncologistas disseram que o que aprenderam nos últimos seis meses os ajudou a se prepararem para o aumento de casos de covid-19 e o início da segunda onda global.
Lições da primeira onda
Nos Estados Unidos, a covid-19 atingiu diferentes regiões em momentos e em graus diferentes. Uma das primeiras áreas atingidas foi Seattle, no estado de Washington.
"Nós partimos para o ataque, fomos baseados em evidências, organizamos as coisas muito, muito rapidamente", disse a Dra. Julie Gralow, médica e professora da University of Washington School of Medicine e do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos EUA.

Dra. Julie Gralow
"Fizemos um trabalho muito bom mantendo a covid-19 fora de nossos centros de câncer", disse a Dra. Julie. "Aprendemos como ser super seguros, como manter as pessoas sintomáticas fora dos centros e como limitar o número de acompanhantes. Tudo se resume ao número de pessoas com quem você entra em contato."
No entanto, a história foi diferente para os oncologistas de vários outros países, e algumas vezes houve uma grande disparidade dentro de cada país.
"Tratamos menos pacientes com câncer durante a primeira onda", disse o Dr. Dirk Arnold, médico e diretor do Hubertus Wald Tumorzentrum do Universitäres Cancer Center Hamburg, na Alemanha, em uma entrevista ao Medscape Germany. "Em parte, isso aconteceu porque a equipe estava em quarentena e porque tínhamos uma infraestrutura completamente diferente em todos os hospitais. Mas também menos pacientes com câncer procuraram a clínica. Muitos recursos foram direcionados para a covid-19."
Na Espanha, a telemedicina ajudou a manter as consultas, mas outras áreas sentiram o efeito das cargas de pacientes de covid-19.
"Pelo menos no Departamento de Oncologia do nosso centro, mantivemos praticamente 100% dos atendimentos, principalmente por telefone", disse o Dr. Benjamin, "mas a realidade é que a Espanha ainda não está preparada para a telemedicina".

Dra. Laura Mezquita
A Dra. Laura Mezquita, médica do Departamento de Oncologia Médica do Hospital Clínic de Barcelona, também na Espanha, descreveu uma situação mais dramática: "Vimos como alguns de nossos pacientes, especialmente com doença metastática, não receberam tratamento intensivo e de suporte de vida, assim como tratamentos específicos contra covid-19 (tocilizumabe, remdesivir, etc.) devido ao colapso geral da saúde durante a primeira onda", disse a médica. Ela disse ainda que populações oncológicas específicas, como aquelas com tumores torácicos, foram mais afetadas.
Oncologistas estressados
Muitos oncologistas ainda se sentem estressados e esgotados após a primeira onda, justo quando a segunda onda de casos se inicia na Europa e nos Estados Unidos.
Uma pesquisa apresentada no European Society for Medical Oncology (ESMO) 2020 mostrou que, em julho e agosto de 2020, um terço dos oncologistas participantes relatou sofrimento moral e mais da metade disse estar exausta.
"O cansaço e a exaustão da equipe são visíveis", disse o Dr. Dirk. "Recentemente, tivemos uma discussão na força-tarefa sobre o que acontecerá quando tivermos uma segunda onda, e como o departamento e nossos serviços se adaptarão. Ficou claro que aqueles que estavam na linha de frente na primeira onda tinham pouca vontade de repetir a dose na segunda onda."
Outra preocupação: o efeito da covid-19 na disponibilidade de profissionais de saúde.
"Temos uma população de jovens profissionais da saúde acometidos pela covid-19 com uma taxa de absenteísmo sem precedentes", afirmou Sophie Beaupère , delegada geral da Unicancer desde janeiro de 2020.
Ela conta que, em geral, a taxa de absenteísmo nos centros de câncer é de 5% a 6%, em média, dependendo do ano. Mas agora essa taxa disparou.
Ciclo Stop-Start na cirurgia
Com os profissionais da saúde em quarentena em todo o mundo, mais de 10% dos pacientes com câncer tiveram algum tratamento cancelado ou adiado durante a primeira onda da pandemia, de acordo com outra pesquisa da ESMO, que envolveu 109 oncologistas de 18 países. Trinta e quatro por cento dos centros relataram dificuldades em relação às cirurgias, mas também foram relatadas dificuldades para realizar quimioterapia (22% dos centros), radioterapia (13,7%) e terapia com inibidores do ponto de controle (9,1%), anticorpos monoclonais (9%) e terapia oral direcionada (3,7%).
A interrupção das cirurgias é uma preocupação real na França, disse o Dr. Axel, acrescentando que nas regiões que foram duramente atingidas pela covid-19, "não foi possível ter acesso à sala de cirurgia para pessoas que absolutamente precisavam ser operadas; por exemplo, pacientes com câncer de pulmão que ainda era operável. A maioria das salas de recuperação foi mobilizada para reanimação".
Pode haver algumas soluções, sugeriu Thierry Le Breton, diretor-geral do Institut National du Cancer, na França. "Estamos nos preparando, junto ao Ministério da Saúde, para um possível aumento da pressão sobre os hospitais, o que nos levaria a precisar remarcar cirurgias. Nacional, regional e localmente, estamos vendo como podemos retomar e priorizar as cirurgias que não foram feitas", disse ele.
Atrasos no diagnóstico de câncer
Embora a covid-19 tenha afetado o tratamento, muitos oncologistas disseram que o principal impacto da primeira onda foi o atraso no diagnóstico do câncer. Parte disso se deveu à suspensão dos programas de rastreamento de câncer, mas também houve o receio da população geral de buscar atendimento em clínicas e hospitais durante a pandemia.

Dr. Karol Sikora
"Não nos saímos tão bem em relação ao câncer durante a primeira onda aqui no Reino Unido", disse o Dr. Karol Sikora, médico, professor de medicina do câncer e reitor-fundador da University of Buckingham Medical School, na Inglaterra, e frequente colaborador do Medscape UK. "As linhas de cuidado para o diagnóstico do câncer praticamente pararam, em parte porque os pacientes não procuraram ajuda, mas obter exames de imagem e biópsias também era muito difícil. Mesmo os pacientes referenciados com urgência com a regra de espera de até duas semanas foram recusados."
Na França, "a demora no diagnóstico é indiscutível", disse o Dr. Axel. "Cerca de 50% dos diagnósticos de câncer que se esperaria durante este período foram perdidos."
"Ainda me preocupa que exista um grande engarrafamento que não foi resolvido e, enquanto isso, a crise sanitária está piorando", acrescentou.
"Vimos atrasos no diagnóstico, mesmo quando os pacientes apresentavam sintomas e queriam fazer uma endoscopia", relatou a Dra. Florence Joly , médica e chefe da oncologia médica do Centre François Baclesse, na França. Parte do problema foi em relação à esterilização e falta de produtos, mas ela acredita que lições foram aprendidas. No futuro, "acho que a atividade da endoscopia será mantida o máximo possível. A endoscopia não requer internação e não é um dos procedimentos de maior risco de infecção. Por outro lado, não realizar endoscopias pode levar a atrasos problemáticos no diagnóstico".
A Dra. Julie disse que a primeira onda de covid-19 teve pouco impacto no tratamento do câncer de mama no estado de Washington, nos EUA, mas foi no rastreamento do câncer de mama "que as coisas realmente ficaram complicadas".
"Mesmo tendo voltado totalmente à ativa", ela continua preocupada. Para garantir que a mamografia de rastreamento seja mantida, "espaçamos as consultas a fim de manter nossas salas de espera com menos pessoas, com um tempo maior entre o uso da máquina, para que possamos limpá-la. Para isso, estendemos o horário de funcionamento e estamos abrindo aos sábados".
"Então, estamos realmente operando a 100% de nossa capacidade", comentou a Dra. Julie, mas "fico muito ansiosa, caso muitas pessoas adiem a mamografia de rastreamento e deixem de vir ao serviço para fazer uma".
"Não somente as pessoas entenderam a mensagem de ficar em casa e deixar de fazer coisas que não sejam essenciais, mas também acho que muitas pessoas perderam o seguro saúde quando perderam o emprego", disse ela. E, sem seguro, não há cobertura para o rastreamento do câncer.
"Então, podem não apenas adiar a mamografia, colonoscopia ou rastreamento do câncer cervical, como também podem não conseguir realizá-los, porque não têm seguro de saúde."
Olhando para o futuro com um plano em mente
Muitos oncologistas concordaram que o acesso ao tratamento pode e deve melhorar – e houve alguns movimentos positivos.
"Algumas rotinas mudaram durante os primeiros meses da pandemia, e não as vejo voltando ao que eram tão cedo", disse a Dra. Laura Testa, a respeito do Brasil. "As mudanças/adaptações que foram feitas para minimizar a chance de infecção pelo SARS-CoV-2 ainda estão em vigor e assim continuarão por um tempo. Nesse contexto, a telemedicina ajudou muito. A pandemia forçou os stakeholders a responder e a implementá-la em março. E agora ela está aqui para ficar."
A experiência adquirida nos últimos meses guiou a preparação para a próxima onda.
"Não veremos a desorganização que vimos na primeira onda", disse a Dra. Florence, da França. "A diferença entre agora e o início deste ano é a disponibilidade de testes diagnósticos para covid-19. Esse foi um dos problemas na primeira onda, não tínhamos como fazer o diagnóstico."
Na costa leste dos Estados Unidos, a médica oncologista Dra. Charu Aggarwal também está otimista: "Acho que agora estamos preparados."

Dra. Charu Aggarwal
"Acredito que, se houver uma nova onda de casos de covid-19, estaremos: (a) mais bem preparados psicologicamente e (b) mais organizados", disse a Dra. Charu, professora assistente de medicina da Divisão de Hematologia-Oncologia do Perelman School of Medicine da University of Pennsylvania, nos EUA. "Já temos experiência com todas as ferramentas, temos a telemedicina, temos os protocolos de rastreamento, temos os testes, já estamos universalmente usando máscaras, todos estão lavando as mãos, então eu realmente acho que isso significa que ficaríamos bem".
Na Alemanha, Dr. Dirk concordou que "estamos muito melhor preparados do que para a primeira onda, mas... temos muito a fazer na área de gerenciamento de pacientes, na digitalização do atendimento ao paciente, na alocação clara de recursos quando houver a segunda ou terceira onda. Em muitos aspectos da preparação, eu creio que, infelizmente, não estamos tão bem posicionados quanto esperávamos".
A primeira onda de covid-19 atingiu os serviços de câncer no Reino Unido de forma particularmente intensa: um estudo de modelagem sugeriu que atrasos no referenciamento de câncer levarão a milhares de mortes adicionais e dezenas de milhares de anos de vida perdidos.
"Os serviços de câncer estão funcionando em níveis quase normais agora, mas ainda estão frágeis e podem ser gravemente comprometidos novamente caso o National Health Service (NHS) seja inundado por pacientes de covid-19", disse o Dr. Karol.
A segunda onda pode ser diferente, disse ele. "Embora o número de infecções tenha aumentado, as internações aumentaram bem pouco. Vamos ver o que acontecerá", disse ele ao Medscape em setembro. Desde então, no entanto, o número de infecções continuou a subir e houve um aumento das hospitalizações. Novas medidas de distanciamento social foram implementadas em 12 de outubro, com o objetivo de proteger o NHS de uma sobrecarga.
Na Espanha, o Dr. Benjamin descreveu desta forma: "A realidade é que a 'segunda onda' não trouxe a dor e o choque iniciais que pacientes e profissionais de saúde vivenciaram ao se depararem com algo que, até agora, tínhamos visto apenas nos filmes." A segunda onda levou a novas restrições, como o confinamento parcial desde o início de outubro.
A Dra. Charu disse que seu departamento, recentemente, fez uma conferência com o Dr. Anthony Fauci, médico e diretor do US National Institute of Allergy and Infectious Diseases, sobre o impacto da covid-19 na oncologia.
"Eu perguntei a ele quais conselhos ele daria aos oncologistas, e ele disse para voltarmos a fazer todos os rastreios que estávamos fazendo antes, o mais rápido possível. Isso é o que deve ser repassado aos oncologistas na nossa comunidade – e também aos médicos da atenção primária –, porque muitas vezes são eles que solicitam e lideram os trabalhos de rastreamento."
Este artigo foi originado por Aude Lecrubier, edição francesa do Medscape, e desenvolvido por Zosia Chustecka, Medscape Oncology, com participação adicional de Kate Johnson, jornalista médica freelancer; Claudia Gottschling do Medscape Germany; Leoleli Schwartz do Medscape em português; Tim Locke do Medscape United Kingdom; e Carla Nieto Martínez, jornalista freelancer do Medscape en español.
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Citar este artigo: Os oncologistas estão prontos para enfrentar a segunda onda de covid-19? - Medscape - 26 de outubro de 2020.
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