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Os Estados Unidos, o Japão e a Europa fazem pedidos antecipados de centenas de milhões de doses. A China e a Rússia brigam pela dianteira na corrida para serem fornecedores globais. De forma inédita na história da humanidade, potenciais vacinas contra o SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) estão sendo comercializadas e disputadas antes mesmo da comprovação de segurança e eficácia. E, na participação incomum dos recursos públicos nas etapas mais avançadas do desenvolvimento, o Brasil não fica fora do jogo.
Foi amplamente noticiado o apoio do Brasil aos ensaios clínicos em troca de potenciais benefícios após a aprovação da vacina contra o SARS-CoV-2 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). As autoridades falam publicamente sobre os acordos internacionais de compartilhamento de riscos de investimento, e até sobre a importância de desenvolver vacinas nacionais, "para serem ofertadas como contrapartida para viabilizar a participação do Brasil em consórcios internacionais", segundo Marcelo Marcos Morales, Secretário de Políticas para Formação e Ações Estratégicas, publicou no Facebook. [1] A pressa e a criatividade, porém, deixam aspectos importantes em aberto.
"Supreendentemente, ao aprofundarmos a análise das mais de 1.500 normas jurídicas aprovadas no âmbito da União sobre a covid-19 no período de janeiro a julho de 2020, apenas cinco normas tratam de vacinas, e nem uma oferece uma diretriz clara sobre o que o governo federal brasileiro está fazendo ou pretende fazer para incentivar o desenvolvimento e, quando for o momento, organizar a produção, distribuição e aplicação em massa da vacina no Brasil", disse ao Medscape Fernando Aith, Ph.D., professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e codiretor científico do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da mesma universidade. O professor referiu os resultados preliminares do projeto "Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil", que farão parte do boletim Direitos na Pandemia.
A única medida normativa mais específica adotada pela União, de acordo com o Dr. Fernando, foi publicada em março; definindo critérios e procedimentos, extraordinários e temporários, em virtude da emergência de saúde pública internacional decorrente da pandemia de covid-19, para tratamento de petições de registro (medicamentos, produtos biológicos e produtos para diagnóstico in vitro) e mudança pós-registro de medicamentos e produtos biológicos.
"E quando a vacina chegar?" indagou o Dr. Fernando, que é doutor em Saúde Pública pela FSP/USP e fez pós-doutorado em Direito Público na Université Panthéon-Assas.
"De que forma o Brasil irá enfrentar os desafios de incorporação, produção, distribuição e imunização em massa? Como enfrentará o forte poder econômico da eventual patente sobre esse novo produto? Como nos organizaremos para colocar nosso parque industrial farmacêutico público e privado voltado a essa ação estratégica no país? Surpreendentemente, o debate sobre esses temas no Brasil ainda está reservado aos espaços acadêmicos, ficando de fora do debate político nacional", colocou o pesquisador.
Perguntas não faltam. O pagamento antecipado é uma mudança na maneira de financiar as pesquisas das empresas farmacêuticas? Se há chances de fracasso, os estados deveriam estar fazendo estas apostas de alto risco? É uma prática equitativa investir para ter prioridade na compra? Se uma "vacina milagrosa" for comercializada por outro país, as autoridades brasileiras terão fôlego para enfrentar a pressão interna e resistir em distribui-la para a população enquanto não tiverem acesso aos estudos que comprovem a sua segurança, eficácia e qualidade? E se boas vacinas forem alvo de boatos ou fake news? E, por fim, a pergunta que não quer calar: Haverá vacina para todos? O Medscape consultou vários especialistas para tentar responder estas questões.
As negociações
O Brasil está entre os países que investem antecipadamente para garantir o fornecimento de vacinas, caso elas sejam bem-sucedidas. Para entrar nesta corrida, o primeiro movimento foi abrir as portas para os ensaios clínicos das empresas farmacêuticas Sinovac Biotech, AstraZeneca e Pfizer/BioNTech.
Os estudos estão em andamento. A fase 3 do ensaio da vacina desenvolvida pela University of Oxford, na Inglaterra, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca, e que ficou conhecida como "vacina da Oxford", começou em junho no Brasil, quando o acordo de encomenda tecnológica ainda não havia sido assinado ─ o que deve ocorrer ainda em agosto.
Os anúncios públicos prévios respondem ao início das negociações, e ao Memorando de Entendimento, documento que serviu de base para o acordo entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Ministério da Saúde e a AstraZeneca. O memorando assinado em 31 de julho, ele estabelece uma despesa de 1,3 bilhão de reais para o recebimento do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) e a transferência de tecnologia para o restante das vacinas. Outras despesas precisaram ser feitas na ordem de 95,6 milhões de reais, e estão destinadas às adaptações necessárias nas áreas produtivas e de controle de qualidade do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz. Para a segunda fase do processamento da vacina da Oxford, o Ministério da Saúde prevê um repasse de 522,1 milhões de reais destinado à ampliação da capacidade nacional de produção de vacinas.
Em 06 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro, assinou uma medida provisória (MP) que viabiliza os recursos. A proposta prevê um crédito orçamentário extraordinário de 1,9 bilhão de reais para a Fiocruz dar início à produção do imunobiológico. A abertura desse crédito extraordinário segue agora para análise no Congresso Nacional, que terá até 120 dias para aprová-lo.
Um primeiro acordo que o Ministério da Saúde e a Fiocruz estabeleceram com a AstraZeneca e a University of Oxford foi no valor de 127 milhões de dólares para a produção de 30 milhões de doses para os ensaios clínicos. Esta aposta estaria inserida no marco do Covax Facility (Global Vaccine Access Facility), um mecanismo projetado para garantir acesso rápido, justo e equitativo às vacinas contra o SARS-CoV-2 por meio de um pool de recursos financeiros.
A Covax Facility foi desenvolvida pela Gavi, (Vaccine Alliance), uma parceria pública privada que inclui estados, a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, sigla do inglês, United Nations Children's Fund), o Banco Mundial e fundações como a Bill & Melinda Gates Foundation, além de parceiros do setor privado.
Brasil, junto com México, Portugal e Argentina, está entre os 75 países de renda média e alta que aderiram para poder investir nas empresas contra o compromisso de garantia de preferência no fornecimento das doses compradas. No grupo há ainda 90 países pobres ou muito pobres para os quais a adesão significará subsídios e doações de vacinas.
Nem todos são tão confiantes nas promessas solidárias. O Dr. Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada de Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) escreveu no site da Abrasco: "O governo norte-americano e a União Europeia comprometeram-se com a compra antecipada de 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca ao custo de 1,2 bilhão de dólares cada um. É provável que outros países também tenham se associado ao mecanismo Covax Facility ou a outros acordos como o do Butantan com a Sinovac. É possível que tanto a iniciativa do Ministério da Saúde/Fiocruz quanto a do estado de São Paulo/Butantan, caso as respectivas vacinas venham a conseguir registro na Anvisa, possam sofrer dificuldades no fornecimento de suas vacinas. Será preciso observar a capacidade de produção de cada uma das vacinas no Reino Unido e na China – haja vista que os primeiros lotes serão fornecidos pelos produtores e terão que competir com outros acordos de fornecimento, nacionais ou locais. Muito provavelmente os dois acordos prevejam cláusulas referentes às datas de entrega, mas as experiências já vividas no curso da pandemia sugerem que nem sempre prazos contratados têm sido respeitados."
O diretor do Bio-Manguinhos, Maurício Zuma, afirmou que existe a possibilidade de se começar a produzir a vacina no final de 2020, pois no cronograma está previsto a partir de dezembro receber o IFA para realizar formulação, embalagem, rotulagem e controle de qualidade de 30 milhões de doses.
"Assim que estiver o registro do produto, receberemos o necessário para produzir outras 70 milhões de doses. Não temos data firme, mas a previsão é estarmos certificados pela Anvisa e produzindo as vacinas no primeiro semestre de 2021", afirmou o diretor.
As negociações do governo com a AstraZeneca, porém, não são exclusivas. Em julho o UOL publicou o anúncio das negociações do ministro da Saúde interino, Eduardo Pazuello, com a empresa Moderna Inc., no qual o governo federal afirma que também vai abrir negociações com a Pfizer para a possível compra de vacina desenvolvida pela farmacêutica norte-americana em parceria com a empresa alemã de biotecnologia BioNTech.
Em âmbito estadual, São Paulo foi o primeiro estado a tornar público o acordo com a companhia Sinovac Biotech, que prevê, caso a última etapa de testes comprove a eficácia da vacina, a transferência de tecnologia para a produção do imunizante no Brasil. O acordo com a empresa estatal chinesa incluiria uma cláusula de compensação tecnológica com transferência da tecnologia. No webinar realizado recentemente pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), o Dr. Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantan, afirmou: "Nosso acordo é um grande marco. A Sinovac se comprometeu a produzir a vacina a risco na China, de tal forma que, quando tivermos resultados favoráveis a aprovação por parte da Anvisa, possamos importar diretamente. O está fazendo uma reformulação da área produtiva e ampliando o parque produtivo para não alterar a produção das outras vacinas."
Com os ensaios clínicos já iniciados, o governador de São Paulo João Doria se reuniu com 200 empresários que se comprometeram a doar 96 milhões de reais, da meta de 130 milhões de reais, para custear uma fábrica que o Instituto Butantan pretende construir dentro de 10 meses.
O governador de Paraná, Carlos Roberto Massa Júnior, assinou um termo de confidencialidade com a empresa estatal chinesa Sinopharm Group, que possibilitará a realização da terceira fase de testes da vacina no estado. Estima-se que os testes sejam iniciados ainda em agosto. Segundo foi divulgado pelo governo do Paraná, em caso de resultados favoráveis, o Sinopharm Group irá repassar a tecnologia para o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) produzir a vacina. De acordo com Massa Júnior, a intenção é fazer com que o Tecpar seja um polo de produção e distribuição da vacina para o restante do Brasil e de países da América do Sul; mas apenas após resultados satisfatórios obtidos na fase 3, será possível iniciar as tratativas para a produção, uma nova etapa na parceria.
Antes da pandemia, este tipo de investimento público era feito principalmente pelas empresas farmacêuticas, e os estados se ocupavam quase unicamente do desenvolvimento das fases anteriores, pré-clínicas ou de prova de conceito das vacinas. No cenário atual, com regras de compras e contratação flexibilizadas para responder à emergência de forma mais ágil, esses investimentos inéditos deveriam ser foco de mais atenção. Especialmente no Brasil, onde o grau de transparência do governo federal no combate à covid-19, calculado pela organização não governamental (ONG) Transparência Internacional e divulgada pelo Nexo Jornal, é de apenas 49.3/100 (A publicação mede o grau de prestação de contas sobre as compras públicas durante a crise de saúde).
"Se a vacina não for adiante, é possível que, no futuro, o Tribunal de Contas da União diga que isso fere as normas. Mas vou lamentar muito se isso acontecer, porque acredito que está sendo feito de boa fé e corretamente", disse o Dr. Reinaldo Guimarães.
Em um seminário virtual internacional sobre vacinas e medicamentos para covid-19 realizado na última semana de julho, o diretor do Bio-Manguinhos compartilhou suas expectativas de ter em outubro ou novembro resultados preliminares robustos, que possibilitem o registro emergencial da vacina de Oxford para uso imediato. Em caso de sucesso, estima-se que sejam produzidas 40 milhões de doses por mês no país.
De acordo com Maurício Zuma, a segunda fase é especialmente relevante, pois neste momento o Brasil vai receber a tecnologia de produção do IFA. Ele garantiu que o acordo é vantajoso, mesmo que a vacina não seja aprovada; o principal ganho pode ser a recepção e internalização da tecnologia desenvolvida pela University of Oxford com o uso de adenovírus de chimpanzé. Segundo Maurício, "eles estão trabalhando há anos com esta plataforma ChAdOx1", e já desenvolveram várias vacinas com resultados satisfatórios, o que possibilitou a criação da vacina contra o SARS-CoV-2 em um curto período. Ele disse ainda que o atual objetivo é obter acesso a uma plataforma que, se for o caso, pode se adaptar a uma possível mutação do SARS-CoV-2 ou ser usada para desenvolver vacinas para outros alvos. "Este é o nosso grande ganho", afirmou ele.
Os riscos compensam?
O Dr. Reinaldo não tem dúvidas de que, para um país como o Brasil, recorrer a esse tipo de investimento de risco vale a pena.
"Acho que foi uma medida correta da Fiocruz, exercer uma ética de responsabilidade. Em um prato da balança está a probabilidade de não dar certo, no outro, a de que a vacina seja boa e o país ficar sem as doses e sem proteger. É evidente que há um risco, mas se coubesse a mim, eu teria tomado uma decisão parecida."
O Dr. Gonzalo Vecino Neto, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, também apoia a decisão brasileira. Ele faz uma conta simples, "se fase 1 e fase 2 são promissoras, vem uma fase 3 que demora uns quatro meses, mas fazer uma fábrica ou adaptar um espaço demora uns seis meses, produzir um lote demora uns quatro meses mais, estamos falando de 14 meses. Em quatro meses tivemos 80 mil mortes no Brasil. A questão é: Vamos deixar passar mais 250 mil mortes ou vamos participar desse esforço, correndo risco ao queimar etapas?" Ele acrescentou que desconhece os termos dos acordos, mas ressaltou que é evidente que quando as vacinas passarem da fase 3 haverá uma grande demanda no mundo inteiro.
"Mas é uma pergunta complexa, não é fácil de responder", disse. "Se eu fosse a empresa privada, colocaria um sobrepreço pelo eventual sucesso da vacina. Frente à epidemia, a resposta mais correta é os estados compartilharem o risco com a iniciativa privada."
A conveniência ou não de fazer despesas antecipadas depende de muitos fatores, e um deles é a chance de sucesso do investimento. Como já foi mencionado no Medscape , o sucesso para uma vacina contra o SARS-CoV-2 não significa 100% de eficácia. As perspectivas ficaram ainda mais claras quando, no dia 03 de agosto, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, Ph.D., alinhou as expectativas em relação ao tema, afirmando que "não há bala de prata no momento e talvez nunca haja"; no entanto, na mesma conferência, o Dr. Tedros disse também que "uma série de vacinas estão agora em ensaios clínicos de fase 3, e todos esperamos ter uma série de vacinas eficazes, que possam ajudar a prevenir as pessoas de infecções".
No artigo Vacinas Anticovid: Um Olhar da Saúde Coletiva, [2] o Dr. Reinaldo assinalou que em toda testagem clínica está embutida alguma probabilidade de insucesso. Ele citou a análise de 881 testes clínicos realizados entre 2000 e 2015 com vacinas candidatas contra agentes infecciosos que tinham apenas 33,4% de probabilidade de sucesso para as três passagens de fase (fase 1 para 2, fase 2 para 3 e fase 3 para a aprovação). Mas, observando apenas as vacinas que alcançaram a fase 3 (269 ensaios), a probabilidade de serem aprovadas foi de 85,1% (± 2,2%).
Em relação às vacinas contra o SARS-CoV-2, poderíamos pensar que as chances de fracasso são menores? Uma vantagem é que a exigência de eficácia para a aprovação não vai ser tão alta. Não se trata de um relaxamento das autoridades brasileiras, mas da OMS e da Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos, que decidiram aprovar vacinas capazes de prevenir ou impedir a ocorrência de covid-19 grave em mais de 50% dos vacinados.
Após a aprovação, ainda pode haver surpresas. De forma geral, as vacinas são seguras, [3] mesmo considerando que alguns efeitos indesejáveis só são reconhecidos após o registro e após identificados nos programas de vigilância pós-marketing. São problemas de significância clínica limitada, o que confirma a robustez do sistema. "Só algumas vacinas, como a da dengue (Sanofi) morreram na fase 4, mas essa é a exceção que confirma a regra", disse o Dr. Reinaldo.
Mas há outras incertezas que não acabam com a aprovação. "A eficácia é apenas o passo inicial de um processo mais longo e complexo, que inclui efetividade e eficiência", alegou Dr. Reinaldo. Estes critérios, caso não sejam satisfatórios, não impedem a aprovação, mas são decisivos para a utilização em programas públicos de vacinação em massa.
"O que é preciso discutir, e que não está sendo bem apresentado pela imprensa e pelas autoridades envolvidas é, antes de mais nada, o quão boa a vacina vai ser", disse Dr. Reinaldo.
O Dr. Reinaldo lembrou que o que está sendo analisado nos ensaios clínicos ocorre em ambientes controlados, "entretanto, as vacinas podem não ser tão eficazes e seguras quando chegam às populações a que se destinam". Uma boa vacina deve fornecer uma memória imunológica longa, e não apresentar manifestações de enhancement, além de superar com sucesso os problemas de logística. Algumas das candidatas mais promissoras requerem estocagem em temperaturas muito baixas ou mais de uma dose – o que sempre é um problema. Há também outros desafios para atingir a ampla cobertura das populações-alvo, que vão desde a necessidade de uma campanha de vacinação adequada até superar os movimentos antivacina.
O Brasil tem uma vantagem importante para sair bem na foto; o Programa Nacional de Imunizações do Sistema Único de Saúde (PNI/SUS), com cerca de 30 mil salas de vacinação. Mas não se pode esquecer que o preço a ser pago pelas vacinas ainda é um assunto em pauta, que é tema de ávidas discussões envolvendo o poder político e financeiro, governos, organismos multilaterais e grandes organizações filantrópicas.
O preço e como pagá-lo
No início de junho, governos e organizações filantrópicas globais já haviam doado mais de 4,4 bilhões de dólares para empresas farmacêuticas investirem em pesquisas e desenvolvimento de vacinas contra o SARS-CoV-2. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) fizeram um apelo [4] para que esse financiamento fosse condicionado à disponibilização dos medicamentos subsidiados a um preço acessível para todos. Kate Elder, consultora sênior sobre políticas de vacinas da Campanha de Acesso dos MSF disse: "Parece ser de comum acordo que a lógica dominante de mercado não deve ser aplicada nessa situação, e que os maiores licitantes não podem ser os primeiros a obter os meios que protegerão a população contra essa doença enquanto o resto do mundo é deixado para trás. Os governos devem garantir que todas as vacinas contra o SARS-CoV-2 sejam vendidas a preço de custo."
A AstraZeneca se comprometeu a vender as vacinas sem lucro. Maurício Zuma, do Bio-Manguinhos, disse que, "graças ao compromisso da AstraZeneca, de fazer a parceria a preço de custo, estamos comprometidos com o acesso com o custo estimado de três a quatro dólares". A Pfizer, assim como a MSD e a Moderna, anunciaram que não venderão o medicamento a preço de custo. Nas negociações com os Estados Unidos, a Johnson & Johnson fechou a venda da dose em 10 dólares – quase a metade do preço acordado com a Pfizer/Biotech e menos de um terço do valor anunciado pela Moderna Inc. Na corrida de países ricos para monopolizar vacinas em desenvolvimento, até surgiu a proposta de um preço "máximo" de 40 dólares a dose.
No Brasil, o preço será fixado no ato da concessão de registro pela Anvisa, que ocupa a Secretaria Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). O cálculo do preço de entrada, independentemente da origem (importado, insumo importado, etc.), será fixado pela CMED com base nos parâmetros definidos pelo regulamento da CMED, que considera os preços praticados em um conjunto de países. O Comitê Técnico Executivo da CMED tem como competência fixar o preço de entrada desses produtos no ato de concessão do registro, e a partir de então é reajustado por um índice controlado pelo governo.
Além de regular o preço, "o Estado poderia proibir a comercialização privada e se tornar único distribuidor, mas não sabemos como vai ser", concluiu o Dr. Fernando Aith.
Uma das autoridades que se manifestou a favor da vacina acessível a todos foi o presidente da China, Xi Jinping, que prometeu na Assembleia Mundial da Saúde, o órgão decisório da OMS, que as vacinas desenvolvidas pela China se tornarão um "bem público global". É o desejo expressado por muitos países, como por exemplo a Argentina, cujo ministro da Saúde, o médico sanitarista Dr. Ginés González García, já fez a proposta em diversos eventos internacionais e regionais.
"Bem público significa basicamente duas coisas: Não há rival e não é excludente", explicou o pesquisador argentino Sebastián Tobár, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) da Fiocruz e secretário executivo da Aliança Latino-Americana de Saúde Global (Alasag). Ele deu exemplos: "ninguém fica excluído da vigilância sanitária ou da promoção da saúde, não tem um rival para concorrer na cloração das águas ou no combate vectorial. todos se beneficiam". E global significa que não há limites impostos por fronteiras.
No Seminário Virtual Internacional: Vacinas e medicamentos para covid-19 como bens públicos globais , promovido pela Fiocruz, Sebastián projetou um cenário futuro com a vacina aprovada, mas destacou que há assimetrias entre os países no que tange as capacidades de pesquisa e produção. O pesquisador destacou que os organismos multilaterais têm a responsabilidade de garantir que se produzam vacinas em quantidade suficiente e custo viável para toda a população – em nível global. "Fechar as fronteiras não é a solução. A vacina tem de ser um bem público global e temos que trabalhar nisso."
A avaliação do Dr. Jorge Bermudez, médico, doutor em Saúde Pública e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), foi no mesmo sentido: "As vacinas vão ser consideradas um bem global ou vão ser disputadas no mercado selvagem?", questionou. A proposta do Dr. Jorge é "pressionar os níveis decisórios e produtivos dos nossos países e pensar em soluções regionais que possam ser implementadas". Ele destacou o projeto-de-lei (PL) que estabelece licenças obrigatórias efetivamente automáticas para tecnologias associadas à covid-19 na vigência da emergência de saúde pública internacional e nacional.
O Dr. Fernando Aith também considera que as vacinas contra o SARS-CoV-2 devem se tornar um bem público global, mas acredita que no plano internacional esta é uma possibilidade distante.
"No Brasil as discussões são mais intensas, no sentido de se o governo brasileiro deveria decretar licença compulsória (chamado popularmente de 'quebra de patente') por necessidade pública", afirmou. Com concordância do detentor da patente ou não, no Brasil teríamos de autorizar outras empresas públicas ou privadas a produzir as vacinas e colocá-las no mercado sem pagar royalties. Existem instrumentos jurídicos para isso, assim como justificativa técnica suficiente, para decretar licença compulsória. Iremos utilizar o instrumento da licença compulsória previsto no Art. 71 da Lei 9279/1996?", questionou. "O governo federal não está se manifestando."
O diretor do Bio-Manguinhos também afirmou que as vacinas devem ser tratadas como um bem público global e relatou discussões com a empresa para destinar o excesso de produção para os países da América Latina via Organização Pan-americana da Saúde (OPAS).
"Entendemos que é muito importante participar do movimento de solidariedade, especialmente com a América Latina."
O Instituto Butantan faz parte da Rede de Produtores de Vacina dos Países em Desenvolvimento (DCVMN, sigla do inglês, Developing Countries Vaccines Manufactures Network), uma iniciativa que visa reduzir as assimetrias globais e garantir acesso universal à imunização.
"Já tivemos algumas conversas com o fundo rotatório da OPAS para tentar garantir acesso para América Latina. O Brasil, a Argentina e o México produzem vacinas, mas o Brasil tem uma capacidade instalada desproporcionalmente maior, e temos um compromisso que vai muito além das nossas fronteiras", destacou o Dr. Ricardo Palacios.
Para todos os brasileiros?
Em nenhum cenário, nem no mais otimista, se acredita que no futuro próximo haverá vacina para todos. "Basicamente, precisamos estar preparados para o sucesso", afirmou o Dr. Francis Collins, médico e diretor dos National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, "mas é provável que não haja doses suficientes para todos no mundo no primeiro dia. A chave é estabelecer uma estratégia de distribuição e o próximo passo vai ser determinar prioridades".
Na OMS, há um grupo estratégico internacional de especialistas em vacinas e vacinação que produz recomendações. Há um grupo de trabalho para cada vacina, e, em condições normais, quando o imunizante é validado e registrado, este grupo recomenda o número de doses, o esquema terapêutico, o intervalo e os níveis mínimos de cobertura de acordo com as evidências científicas. Os 15 membros do grupo covid-19 começaram a trabalhar em junho e já se reúnem virtualmente duas vezes por semana.
"Nós somos um grupo consultivo, mas será cada país que definirá os grupos prioritários, quando e como eles serão vacinados dependendo da quantidade de doses disponível e da estratégia adotada", explicou a Dra. Cristiana Toscano, médica infectologista e epidemiologista e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), a única brasileira do grupo de trabalho orientando as estratégias e políticas de vacinação contra o SARS-CoV-2.
Há suficiente consenso de que os primeiros a receberem o direito de vacinação serão os profissionais de saúde. A meta do Covax Facility, por exemplo, é entregar as doses a todos os países participantes, proporcionalmente às respectivas populações e priorizando inicialmente os profissionais de saúde. O objetivo deles é expandir para cobrir 20% da população dos países participantes.
Um critério humanitário colocaria na frente as áreas geográficas onde a doença está se espalhando rapidamente. Hoje, o Brasil seria um dos países prioritários nesta estratégia, "que salva o máximo de vidas e retarda a transmissão mais rápido", segundo Christopher Elias, líder da Divisão de Desenvolvimento Global da Bill & Melinda Gates Foundation.
"Seria ridículo se as pessoas de baixo risco em países ricos recebessem a vacina, enquanto profissionais de saúde na África não têm acesso", acrescentou Ellen 't Hoen, advogada holandesa e ativista na área médica internacional. [5]
Nos EUA, uma discussão considerando o critério de vulnerabilidade – mas dentro das fronteiras do país – levantou a necessidade de incluir a população negra norte-americana entre os grupos com prioridade de acesso à vacina, visto que já foi constatado que esta população está sendo desproporcionalmente acometida pela doença.
No Brasil, não está sendo debatida uma opção que priorize a vulnerabilidade social. "Está claro que os negros morrem mais e os pobres morrem mais. Normalmente o recorte econômico e social não é considerado – mas deveria", avaliou o Dr. Reinaldo.
"Inicialmente, vão recortar as prioridades pelo lado ocupacional e de idade." O Dr. Gonzalo Vecina concordou que, "do ponto de vista da equidade, faz todo sentido priorizar os pobres antes dos brancos ricos, mas duvido que se consiga fazer um escalonamento como esse".
Garantir algum grau de prioridade no fornecimento da vacina à população brasileira vai ser algo a ser pactuado pelo sistema público e consenso tripartite entre Ministério da Saúde, secretarias dos estados e municípios.
Em coletiva de imprensa o governo disse que 100 milhões de doses seria o suficiente para vacinar todos os idosos, adultos com comorbidades, profissionais de saúde, indígenas, pessoas institucionalizadas e encarceradas, motoristas de transportes coletivos e agentes de segurança pública. Foi dito que os critérios podem mudar caso o vírus acometa públicos diferentes em regiões diferentes.
Poderia haver uma priorização em termos de região? De acordo com o Dr. Gonzalo, não há razão para isso; mas, "vamos a chegar a dezembro com muito mais conhecimento a respeito da soroprevalência, e obviamente, se for muito superior, terá uma certa lógica pensar na regionalização, porque o risco será maior – mas essa decisão precisa ser baseada em dados".
Confiança nas vacinas (certas)
A vacinação não pode existir sem confiança em processos, práticas, políticas e recomendações. As vacinas são um dos maiores experimentos sociais mundiais em coletivismo e cooperação, algo que, segundo Heidi Larson, diretora do projeto Vaccine Confidence, depende de um contrato social cujo tecido está se corroendo no contexto atual de antiglobalização, nacionalismo e populismo. A pergunta que ela, e muitos se fazem é: "O que vai acontecer com a vacina que for aprovada? Vai ser aceita por toda a população?"
Um dos fatores que podem diminuir a confiança no futuro são as expectativas irrealisticamente altas. Se não redefinirmos adequadamente tais expectativas, que atualmente são tão altas, a narrativa que questiona o valor das vacinas de forma mais ampla pode ser ainda mais alimentada. [6]
Há evidências de que 26% dos franceses não tomariam a vacina contra o SARS-CoV-2 se ela já existisse [7] e que 12% dos cidadãos do Reino Unido não se vacinariam. [8] Uma pesquisa on-line realizada em maio, o estudo Gapminder , mostra um resultado reconfortante para o Brasil: Apenas 2% dos brasileiros se negariam a tomar uma vacina contra o SARS-CoV-2 que seja comprovadamente segura (versus 23% dos alemães e 16% dos norte-americanos na mesma pesquisa).
Mas o cenário é dinâmico; Clarissa Simas, líder da pesquisa sobre América Latina no projeto Vaccine Confidence , demostrou preocupação em relação à aceitação da vacina contra o SARS-CoV-2. Segundo Clarissa, as inequidades sociais e econômicas, assim como a falta de confiança nas autoridades – que impactaram negativamente na adesão às medidas de isolamento e no uso de máscara na América Latina –, pode influenciar também na hora de aceitar uma vacina contra o SARS-CoV-2. Outro ponto de preocupação é a politização. Clarissa pensa que o apoio às vacinas por parte dos governos que não apoiaram as medidas de distanciamento social e o uso de máscaras é uma pergunta em aberto. Tudo isso poderia potencializar a queda da confiança nas vacinas que a América Latina vem sofrendo nos últimos cinco anos.
Nos EUA, o medo de desconfiança por parte da população suscitou a realização de reuniões das empresas farmacêuticas com os parlamentares. Representantes da indústria demandam que campanhas educativas a favor das vacinas sejam iniciadas desde já, mas alguns destacaram que os médicos teriam mais influência do que as agências governamentais.
O conceito de confiança refere-se, logicamente, às vacinas certas. O Dr. Fernando Aith se diz preocupado com as vacinas misteriosas, "que vão começar a pipocar sem que se tenha acesso às pesquisas clínicas ou às informações necessárias para atestar segurança, eficácia e qualidade do produto. Se a Rússia começar a vacinar, vai haver uma pressão enorme para fazermos o mesmo. Como as nossas autoridades reagirão às pressões interna e externa?"
Por ação ou omissão, o futuro não é isento de riscos. O desenvolvimento de uma ou mais vacinas de qualidade será importantíssimo para enfrentar a covid-19, mas é muito pouco provável que, sozinha, alguma possa resolver o problema em sua totalidade.
O Dr. Reinaldo Guimarães e o Prof. Fernando Aith informaram não ter conflitos de interesses. Gonzalo Vecino Neto é membro do conselho administrativo da Cristalia.
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Citar este artigo: E quando a vacina chegar? - Medscape - 13 de agosto de 2020.
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