Dano cardíaco persistente após covid-19 evoca espectro da insuficiência cardíaca mais adiante

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10 de agosto de 2020

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A presença de evidências de que o coração pode ser duramente afetado em pacientes hospitalizados com covid-19, especialmente naqueles que já têm doença cardiovascular (CV) ou seus fatores de risco, infelizmente está clara desde os primeiros dias da pandemia.

Os estudos de caso e as pequenas séries divulgados até o momento deixam menos evidente, no entanto, se o SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) acomete diretamente o coração e se os efeitos cardíacos agudos da doença podem levar a algum tipo de cardiomiopatia persistente.

O conhecimento acerca dessas questões avançou um pouco com dois novos artigos publicados em 27 de julho no periódico JAMA Cardiology, que parecem validar preocupações de que o vírus pode infectar o miocárdio, sem necessariamente causar miocardite, e a possibilidade de que alguns pacientes "recuperados"  podem ter lesão miocárdica e inflamação persistentes, as quais poderiam eventualmente se manifestar no futuro como insuficiência cardíaca.

Inflamação persistente na RM cardíaca

Um estudo de coorte prospectivo com 100 pacientes recuperados de um evento agudo da doença mostrou evidências de disfunção ventricular, maior massa ventricular e sinais de inflamação do miocárdio (em 78% da coorte) por ressonância magnética (RM) cardíaca. Os achados de RM cardíaca tiveram correlação com elevações na troponina T por ensaio de alta sensibilidade (TnT-as).

Dois terços da coorte, cuja gravidade da covid-19 aguda "variou de assintomática a sintomas leves a moderados", tinham se recuperado em casa, enquanto o restante dos "pacientes gravemente doentes" havia sido hospitalizado, escreveram os autores, liderados pela Dra. Valentina O. Püntmann, Ph.D., médica do University Hospital Frankfurt, na Alemanha.

Nenhum dos pacientes tinha história de insuficiência cardíaca ou cardiomiopatia, embora alguns tivessem hipertensão, diabetes ou evidências de doença coronariana.

"Nossos resultados demonstram que os participantes com relativamente poucas doenças cardiovasculares preexistentes e com recuperação principalmente domiciliar tiveram envolvimento inflamatório cardíaco frequente, semelhante ao subgrupo de pacientes hospitalizados, em relação a gravidade e extensão", observou o grupo.

"Há uma considerável inflamação miocárdica em atividade semanas após a recuperação da covid-19. Esse achado é importante, porque pode resultar em um impacto considerável de insuficiência cardíaca em alguns anos", disse ao Medscape a Dra. Valentina.

O diagnóstico precoce ofereceria "uma boa chance de que o tratamento precoce reduza ou até mesmo interrompa o curso inexorável dos danos inflamatórios", disse ela.

"O início relativamente claro da doença na covid-19 oferece uma oportunidade, que muitas vezes não temos com outras doenças, de tomar uma atitude proativa e pesquisar logo o envolvimento cardíaco – dentro de algumas semanas da recuperação."

As evidências no estudo de edema inflamatório, cicatrizes/fibrose e derrame pericárdico demonstradas por RM cardíaca estão entre "os principais critérios diagnósticos para miocardite viral e inflamatória", observou a Dra. Biykem Bozkurt, Ph.D., médica da Baylor College of Medicine, nos Estados Unidos, que não participou dos novos estudos.

Os resultados sugerem – em consonância com as evidências anteriores – que alguns pacientes com covid-19 recente podem permanecer com inflamação do miocárdio em atividade, e este estudo ainda acrescenta que há potencial de se tornar subaguda ou mesmo crônica, e em algumas pessoas isso pode não ser totalmente reversível, disse ela ao Medscape. Quanto tempo os efeitos devem persistir "ainda é algo que precisa ser determinado. Precisamos de dados de desfechos em longo prazo".

Presença viral sem miocardite

O relato que acompanha o estudo mostrou uma análise post mortem do coração de 39 pacientes, a maioria com covid-19 grave, que indicou presença significativa de SARS-CoV-2 e sinais de que o vírus se replicou vigorosamente no miocárdio.

Mas não havia evidências de que a infecção levasse a miocardite fulminante. Em vez disso, o vírus aparentemente se infiltrou no coração, localizando-se em células intersticiais ou em macrófagos que ocupavam o miocárdio sem, de fato penetrar os miócitos, concluíram os autores do relatório, liderados pela Dra. Diana Lindner, Ph.D., University Heart and Vascular Center, na Alemanha.

Os resultados sugerem "que a presença do SARS-CoV-2 no tecido cardíaco não necessariamente causa uma reação inflamatória consistente com miocardite clínica", escreveu o grupo.

Anteriormente na literatura, nos "casos em que a inflamação miocárdica estava presente, também havia evidências de miocardite clínica e, dessa forma, os presentes casos embasam uma fisiopatologia diferente", concluíram.

Não foi encontrada evidências do vírus em 15 casos, cerca de 61% do grupo. Em 16 dos 24 corações restantes, a carga viral excedeu 1.000 cópias por μg de RNA – uma presença substancial. Os 16 órgãos tinham aumento da expressão de citocinas inflamatórias, porém infiltrados de células inflamatórias ou alterações na contagem de leucócitos não foram identificados, observaram os pesquisadores.

"Os resultados de possível replicação viral nos casos com uma carga viral muito alta mostram que precisamos fazer mais estudos para descobrir as consequências em longo prazo, desconhecidas no momento", disse ao Medscape o autor sênior Dr. Dirk Westermann, que também é médico na University Heart and Vascular Centre.

Implicações na insuficiência cardíaca

As descobertas post mortem da Dra. Diana Lindner e colaboradores "fornecem evidências intrigantes de que a covid-19 está associada a pelo menos algum componente de lesão miocárdica, talvez como resultado de infecção viral direta do coração", escreveram Dr. Clyde W. Yancy, médico da Northwestern University, e Dr. Gregg C. Fonarow, médico da University of California, Los Angeles, nos EUA, em um editorial que acompanha os dois artigos.

O estudo com RM cardíaca da Dra. Valentina O. Püntmann e colaboradores – no contexto de observações anteriores na covid-19 – sugere o potencial de "disfunção residual do ventrículo esquerdo e inflamação contínua" nos meses após o diagnóstico da doença. Ambos os achados podem ser "motivo de preocupação suficiente para representar um ponto de partida para o surgimento da insuficiência cardíaca e outras complicações cardiovasculares", afirmaram os editorialistas.

"Quando adicionados aos achados patológicos post mortem de Lindner et al., consideramos que a situação fica mais complexa, e estamos inclinados a levantar uma preocupação nova e muito evidente de que a cardiomiopatia e a insuficiência cardíaca relacionadas com a covid-19 têm o potencial de evoluir à medida que a história natural dessa infecção fica mais clara", escreveram.

Alguns pacientes, tendo se recuperado da doença aguda, podem ficar com um estado inflamatório crônico que provavelmente os coloca em maior risco de insuficiência cardíaca futura, concordou a Dra. Biykem ao ser entrevistada.

"Eles podem apresentar posterior declínio na função cardíaca, e sua recuperação pode demorar mais do que com as doenças virais que vemos usualmente", disse ela.

"Também pode haver risco de morte súbita. Por vezes, a inflamação causa morte súbita e arritmia ventricular, com as quais eu me preocuparia muito, especialmente se houver um estresse miocárdico", disse a Dra. Biykem.

"Portanto, esportes competitivos poderiam ser arriscados para esses pacientes."

Coorte covid-19 vs. controles pareados

O estudo de RM cardíaca da Dra. Valentina e colaboradores inscreveu prospectivamente 100 pacientes ambulatoriais ou internados recém-recuperados de covid-19 aguda, que haviam sido acompanhados em um registro do University Hospital Frankfurt. A mediana de idade foi de 49 anos; 47% eram do sexo feminino.

Eles foram comparados com 50 pacientes controle pareados por idade e sexo e 50 voluntários aparentemente saudáveis pareados por fatores de risco, observou o grupo.

No mesmo dia da avaliação de RM cardíaca, a comparação dos pacientes recém-recuperados com os controles saudáveis e os controles pareados por fator de risco (P ≤ 0,001 em cada caso) respectivamente revelou:

  • Fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) reduzida: 56% versus 60% e 61%

  • maior índice de volume diastólico final VE: 86 mL/m2 vs. 80 mL/m2 e 75 mL/m2

  • maior índice de massa do VE: 51 g/m2 vs. 47 g/m2 e 53 g/m2

  • maior nível de TnT-as: 5,6 pg/mL vs. 3,2 pg/mL e 3,9 pg/mL

  • maior prevalência de níveis de TnT-as ≥ 3 pg/mL: 71% vs. 11% e 31%

Na RM cardíaca, 78% dos pacientes recuperados de covid-19 apresentaram alterações que incluíam aumento nos valores de T1 e T2 nativo do miocárdio, sugestivo de fibrose e edema de inflamação, em comparação com os dois grupos de controle (P < 0,001 para todas as diferenças), "independentemente de doenças preexistentes, gravidade e evolução geral da doença aguda e o intervalo desde o diagnóstico original", escreveu o grupo. O mapeamento de T1 e T2 nativo correlacionou-se significativamente com TnT-as.

"Agora temos os meios de diagnóstico para detectar inflamação cardíaca precocemente e precisamos fazer todos os esforços para aplicá-los na prática diária", disse Dra. Valentina ao Medscape.

"O uso da ressonância magnética cardíaca nos permitirá melhorar nosso desempenho contra a covid-19 e desenvolver proativamente tratamentos cardioprotetores eficientes", ela disse. "Até que tenhamos meios efetivos de proteção contra a infecção, ou seja, vacinação, precisamos agir rapidamente e com os meios disponíveis."

A análise evoca várias outras maneiras pelas quais os pacientes com covid-19 podem ser rastreados para envolvimento miocárdico significativo.

"As estratégias podem incluir dosagem de troponinas, não apenas no momento da admissão hospitalar, mas talvez na alta e eventualmente até nos indivíduos que estão em casa e não necessariamente estão precisando de cuidados", disse a Dra. Biykem.

"O perfil de biomarcadores e o rastreio para inflamação ativa provavelmente serão componentes importantes da covid-19, especialmente para aqueles com risco e doença subclínicos."

O Dr. Dirk propôs que as elevações da troponina na alta "poderiam ser um bom ponto de partida" para selecionar pacientes com covid-19 para testes funcionais ou exames de imagem para rastreio de sequelas cardíacas. A realização destes exames rotineiramente no momento "representaria uma sobrecarga difícil de lidar, dada a grande quantidade de pacientes sendo atendida atualmente".

A Dra. Valentina informou não ter conflitos de interesses; a declaração de conflitos de interesse dos demais autores constam no artigo. A Dra. Biykem informou ter recebido taxas de consultoria ou honorários de Bayer Healthcare, Bristol-Myers Squibb, Lantheus Medical Imaging e Respicardia; trabalhado em um conselho de monitoramento de segurança para LivaNova USA; e ter relações não especificadas com Abbott Laboratories. A Dra. Diana informou não ter conflitos de interesses; o Dr. Dirk relatou ter recebido pagamentos de AstraZeneca, Bayer, Novartis e Medtronic. O Dr. Clyde é editor-adjunto e o Dr. Gregg é editor de seção do periódico JAMA Cardiology. O Dr. Clyde informou não ter outros conflitos de interesses. O Dr. Gregg relatou ter recebido pagamentos de Abbott Laboratories, Amgen, AstraZeneca, Bayer, CHF Solutions, Edwards Lifesciences, Janssen, Medtronic, Merck e Novartis.

JAMA Cardiol. Publicado on-line em 27 de julho de 2020. Texto completo, Püntmann et al. Texto completo, Lindner et al. Editorial

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