Em remissão há 10 anos: toxicidade e efeitos tardios da terapia com células T CAR

Dra. Veronica Hackethal

3 de agosto de 2020

Para um paciente com câncer, escutar que não há muito mais que os médicos possam fazer, não é algo que se esqueça.

Doug Olson recebeu o diagnóstico de leucemia linfocítica crônica (LLC) há mais de 20 anos, em 1996. Seus médicos optaram pela conduta expectante durante muitos anos, mas em dado momento a doença progrediu, e ele precisou de tratamento. Em 2010, o câncer havia sofrido tantas mutações que não respondia mais à terapia padrão.

Suas opções estavam se esgotando rapidamente. Na época, restava apenas o transplante de medula óssea como alternativa terapêutica. Sem isso, segundo os médicos ele teria apenas um ou dois anos de vida pela frente.

“Eu estava tentando muito evitar o transplante de medula óssea. Eu não teria outras cartas na mão se isso não funcionasse. É um procedimento muito difícil”, disse Doug ao Medscape.

Olhando para trás, Doug se considera sortudo ─ por estar no lugar certo, na hora certa, com o médico certo. Seu oncologista era o Dr. David Porter, o primeiro pesquisador de um ensaio clínico da University of Pennsylvania, nos Estados Unidos, que estava estudando uma novíssima estratégia de tratamento do câncer: a terapia com células T com receptor de antígeno quimérico (CAR, sigla do inglês, Chimeric Antigen Receptor).

A terapia com células T CAR utiliza as células T do próprio paciente, que são programadas em laboratório para expressar um receptor cujo alvo são as proteínas das células cancerosas. As células T CAR são consideradas “medicamentos vivos”, pois se expandem dentro do organismo e lá permanecem por anos – talvez por toda a vida – para combater o câncer, caso ele tente voltar.

“Eu certamente fiquei interessado pela estratégia. Ela tinha funcionado em camundongos, e era o tipo de coisa que tinha cara de que iria funcionar”, lembrou Doug.

A ciência não é um idioma estranho para Doug. Ele é doutor em química médica, dedicou a maior parte de sua carreira à indústria do diagnóstico in vitro, e atualmente é CEO da Buhlmann Diagnostics Corp.

Então ele leu o protocolo clínico do primeiro ensaio clínico usando a reprogramação de células T CAR em humanos e concordou em se tornar o paciente número dois.

As células de Doug foram coletadas; programadas para atacar o antígeno CD19, encontrado nos linfócitos B benignos e malignos; e então foram expandidas para milhões em laboratório. Depois de ser submetido a um pré-condicionamento com quimioterapia para minimizar a rejeição e favorecer a expansão das células T CAR no organismo, ele recebeu várias infusões da nova terapia ao longo de três dias.

Durante duas semanas nada de fato aconteceu. Então Doug apresentou sintomas semelhantes aos de uma gripe forte ─ tão graves que ele foi hospitalizado.

Ironicamente, ficar doente era um sinal de que as células T CAR estavam funcionando. Doug estava vivenciando um dos principais efeitos imediatos da terapia com células T CAR: a síndrome de liberação de citocinas. Os sintomas incluem episódios de febre extremamente alta e perigosas quedas da pressão arterial, com possibilidade de dano em órgãos.

Nos estudos preliminares desses produtos, alguns pacientes apresentaram reações tão graves que precisaram de cuidado intensivo, e alguns morreram. Com o aumento progressivo da experiência clínica, os médicos aprenderam a controlar a reação com corticoides e inibidores da interleucina 6 (IL-6), como o tocilizumabe.

Felizmente, o quadro de Doug resolveu e ele acabou recebendo alta.

E então chegou a hora da verdade: Quatro semanas após receber a terapia com células T CAR, Doug descobriu que não tinha mais câncer.

“Ainda sinto um calafrio”, contou. “O Dr. Porter disse: ‘Sua medula óssea está totalmente livre. Não conseguimos encontrar células cancerosas em lugar nenhum.’”

A remissão durou, e agora isso já faz 10 anos.

Ponderando riscos versus benefícios em tardios

Desde o tratamento de Doug, em 2010, há cada vez mais dados de longo prazo sobre essas novas terapias. Isso é particularmente importante em relação à terapia com células T CAR, por conta da longevidade dessas células. Como são células vivas, e espera-se que perdurem no organismo por anos a fio, existe grande interesse em dados de longo prazo ─ especialmente sobre os riscos de toxicidade.

A Food and Drugs Administration (FDA) dos EUA exige o acompanhamento clínico por no mínimo 15 anos de pacientes tratados com terapia com células T CAR ou qualquer outra célula geneticamente modificada.

Até o momento, a maior parte da experiência clínica com as células T CAR é proveniente da terapia direcionada com anti-CD19, que tem mostrado taxas de remissão “excepcionais”, variando de 50% a 85%, disse a Dra. Nirali Shah, médica chefe da sessão de malignidades hematológicas no Setor de Oncologia Pediátrica do National Cancer Institute (NCI).

Os resultados mais recentes apresentados no encontro anual de 2020 da American Society of Clinical Oncology (ASCO) confirmam os dados de eficácia prévios, ela observou. No acompanhamento mais extenso realizado até agora, os pesquisadores relataram remissões durando mais de nove anos em pacientes com linfoma de células B (recidivado ou refratário) ou leucemia linfocítica crônica tratada com axicabtageno ciloleucel, que uma das duas terapias com células T CAR direcionadas por anti-CD19 aprovadas pela FDA em 2017 – a outra é o tisagenlecleucel.

Esse estudo incluiu 43 pacientes e mostrou uma taxa de remissão global de 76%. A remissão completa foi alcançada por 54% dos pacientes e 22% tiveram remissão parcial.

O outro foco é a segurança em longo prazo. Embora alguns eventos adversos tardios sejam conhecidos e tratáveis, outros caem no campo da hipótese. No início de maio, o NCI realizou uma conferência virtual multidisciplinar sobre terapia com células T CAR “para incentivar pesquisas colaborativas sobre o perfil de toxicidade subagudo e potencialmente tardio desses tratamentos”.

“Sabemos bem pouco nesse momento sobre os efeitos tardios da terapia com células T CAR, pois estamos relativamente no começo da era das células T CAR”, disse a Dra. Merav Bar, médica do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos EUA.

Aplasia de células B e risco de novas infecções

O que se sabe é que a aplasia de células B é o evento adverso tardio mais comum da terapia com as células T CAR. A aplasia de células B pode ocorrer quando a terapia T CAR anti-CD-19 elimina células B saudáveis junto com as malignas, responsáveis pela leucemia/linfoma.

Como grandes protagonistas do sistema imunológico, as células B são a principal defesa contra os vírus. Então, a aplasia de células B representa um tipo muito específico de imunossupressão. É geralmente menos grave do que a imunossupressão que ocorre após um transplante de órgãos, que afeta o sistema imunológico como um todo, e representa um risco muito maior de infecção.

A principal preocupação é o que acontece quando alguém com aplasia de células B entra em contato com um novo patógeno, como o SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2).

Depois da infecção, a célula B produz células de memória, que não são eliminadas pela terapia anti-CD19, e perduram por toda a vida. Então, um paciente como Doug, ainda produz anticorpos que combatem as infecções que ele teve antes da terapia com células T CAR, como a varicela infantil. Mas agora ele é incapaz de produzir novas células de memória, portanto, esses pacientes recebem infusões mensais de imunoglobulinas para se protegerem de patógenos com os quais eles não tiveram contato antes do tratamento.

Doug leva isso a sério, e disse não estar excessivamente preocupado com a covid-19. Ele segue as precauções recomendadas para um homem da sua idade. Usa máscara, lava as mãos com frequência e busca manter o distanciamento físico. Mas não fica trancado em casa.

“Eu tenho a mesma atitude de quando fui diagnosticado com câncer, eu vou viver a minha vida”, ele disse. “Para mim, qualidade de vida é mais importante do que quantidade.”

Toxicidade neuropsiquiátrica

Outro problema é a possibilidade de toxicidade neuropsiquiátrica. Estudos prévios reportaram uma ampla variedade de toxicidades associadas à terapia com células T CAR, inclusive convulsões e alucinações. A maioria ocorreu precocemente no curso do tratamento, pareceu ser de curta duração e reversível. No entanto, ainda permanecem questões sobre problemas neuropsiquiátricos tardios.

Em um extenso estudo com 40 pacientes com leucemia linfocítica crônica recidivada/refratária, linfoma não Hodgkin e LLA, quase metade dos pacientes (47,5%; 19/40) referiu pelo menos um desfecho neuropsiquiátrico negativo clinicamente relevante (ansiedade, depressão ou dificuldade cognitiva) de um a cinco anos depois da terapia com células T CAR anti-CD-19. Além disso, 37,5% (15/40) relataram dificuldades cognitivas.

“Pacientes com neurotoxicidade mais grave mostraram uma tendência de mais dificuldades cognitivas posteriores”, disse a Dra. Merav, autora sênior do estudo.

No entanto, revelar o papel que a terapia com células T CAR tem nesses problemas é um desafio. Todos esses pacientes haviam passado por rigorosos tratamentos contra o câncer, que também vêm sendo associados a problemas neuropsiquiátricos.

“Ainda não sabemos o que causou isso”, disse a Dra. Merav. “Assim, as pessoas precisam prestar atenção aos sintomas neuropsiquiátricos da terapia com células T CAR. É importante continuar a monitorar esses pacientes para esses problemas.”

Doença do enxerto contra o hospedeiro

Outro possível problema é a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH), que não é incomum depois de transplantes de células tronco hematopoiéticas. A doença ocorre quando as células T do doador percebem os antígenos das células saudáveis do receptor como estranhas e as atacam.

A doença do enxerto contra o hospedeiro é uma preocupação em pacientes tratados com células T, principalmente em indivíduos que já receberam um transplante e, portanto, têm mais risco de sofrer essa complicação.

Em um estudo sobre os efeitos tardios feitos com 86 adultos tratados com células T CAR anti-CD19 para linfoma não Hodgkin recidivado/refratário, Dra. Merav e colaboradores constataram que a doença do enxerto contra o hospedeiro ocorreu somente em pacientes que tinham recebido transplante de células-tronco alogênico. Desses, 20% (3/15) apresentaram doença do enxerto contra o hospedeiro cerca de 28 meses após a terapia com células T CAR.

“Os dados sobre células T CAR causando doença do enxerto contra o hospedeiro realmente não revelaram que este seja um grande problema, embora seja observado ─ vamos continuar a monitorá-lo”, disse a Dra. Nirali ao Medscape.

Outros eventos adversos tardios

Foram relatados diversos outros eventos adversos tardios associados à terapia com células T CAR, incluindo citopenia prolongada, mielodisplasia e malignidades secundárias.

No estudo com o acompanhamento mais extenso até o momento, 16% (7/43) dos pacientes apresentaram malignidades secundárias, o que é comparável com os dados do estudo da Dra. Merav, nos EUA (15%, 13/86). Para os pesquisadores deste estudo, a taxa encontrada não foi maior que o esperado: esses pacientes já tinham recebido quimioterapia intensa, o que aumenta o risco de outros tipos de câncer, eles apontaram.

No entanto, isso levanta preocupações hipotéticas sobre os efeitos tardios das modificações genéticas. As células T CAR são alteradas usando retrovírus (principalmente lentivírus), que inserem aleatoriamente os genes CAR no genoma do hospedeiro. Fazer isso pode causar mutações que podem causar câncer. Esses lentivírus também carregam o risco hipotético de se tornarem capazes de replicação viral no organismo.

Para abordar essas preocupações, os vírus usados para produzir as células T CAR passam por testes de segurança abrangentes. Depois da terapia, os pacientes são avaliados a cada poucos meses durante o primeiro ano e depois anualmente.

Até o momento, não houve relato da ocorrência de tumores associados à terapia com células T CAR.

“A ocorrência de qualquer tipo de câncer é um risco muito hipotético”, explicou a Dra. Merav ao Medscape. “É mais provável que as neoplasias em nosso estudo estejam relacionadas com o tratamento prévio feito pelos pacientes. Nenhum deles tem nenhuma evidência de replicação de lentivírus ou de que as neoplasias estavam relacionadas com as células T CAR.”

Outra potencial preocupação é a possibilidade de surgimento de doença autoimune, embora, novamente, nenhum caso tenha sido reportado até agora.

“Nós pensamos nisso como uma possibilidade. Sempre que você estimula o sistema imunológico, a doença autoimune é um risco em potencial”, disse o Dr. Carl June, médico e diretor do Center for Cellular Immunotherapies na University of Pennsylvania, nos EUA.

O Dr. Carl foi um dos principais pesquisadores do estudo no qual Doug participou. Ele também é inventor de patentes de células T CAR licenciadas pela University of Pennsylvania para a Novartis e Tmunity e é um dos cientistas fundadores com capital na Tmunity.

Ainda assim, a autoimunidade pode ocorrer, e os cientistas estão cuidando disso.

“Nós continuamos a ser vigilantes em nosso monitoramento para doença autoimune”, acrescentou a Dra. Nirali. “Estamos realizando a terapia com células T CAR desde 2012, e eu acho que ainda precisamos ver a verdadeira autoimunidade por trás da doença do enxerto contra o hospedeiro.”

Direções futuras

Desde quando Doug recebeu a terapia com células T CAR, há 10 anos, toda uma indústria emergiu. Mais de 100 empresas em todo o mundo estão desenvolvendo terapias com células T CAR, tendo como alvo diversos antígenos. Essas terapias são direcionadas a cerca de 60 tipos diferentes de tumores, incluindo tumores sólidos. Quase 200 ensaios clínicos estão em andamento, embora em sua maioria em estágios preliminares: em setembro de 2019, apenas 5% haviam chegado à fase 3.

Dados clínicos mostram resultados promissores em relação à terapia com células T CAR direcionadas contra o CD22 (super expresso nas células da LLA) e BCMA (encontrado em quase todas as células do mieloma múltiplo). Ainda permanecem questões como, se as células T CAR serão tão efetivas caso se voltem contra outros antígenos, além do CD19, ou outras células, além dos linfócitos B. Uma das maiores questões de pesquisa é se serão efetivas contra tumores sólidos.

Uma área de pesquisa sendo observada com muito interesse é o desenvolvimento de células T CAR universais. Até agora, esse produto está em estágio muito preliminar de desenvolvimento (ensaios clínicos de fase 1), mas são atraentes pelas possíveis vantagens em relação às chamadas células T CAR sob medida. A automação do processo promete disponibilidade imediata, produção padronizada, expansão do acesso e redução dos custos. E, como as células T desse produto universal viriam de doadores saudáveis, elas podem funcionar melhor que as células T agredidas e contundidas por tratamentos oncológicos ou mesmo pelo próprio câncer.

No entanto, justamente por serem desenvolvidas a partir de doadores saudáveis de células T, as células T CAR universais podem acarretar um aumento do risco de doença do enxerto contra o hospedeiro. Os cientistas estão tentando contornar este problema ao produzir células T CAR universais sem o receptor de células T envolvido na doença do enxerto contra o hospedeiro.

Também existem outras preocupações. A natureza tem uma tendência à mutação. A alteração genética das células T CAR sem os receptores de células T significa que o organismo pode deixar de identificar ou passar a rejeitar a célula T CAR universal caso haja algo de errado com ela. Além disso, a inserção de genes em uma terapia com células T CAR universais é direcionada, em vez de ser aleatória (como ocorre nas células T CAR sob medida), o que poderia produzir efeitos fora do alvo. Ambas as questões representam um risco hipotético de esses produtos induzirem um câncer incurável associado à terapia com células T CAR.

“O risco hipotético com as células universais é que seu perfil de segurança pode não ser tão bom em longo prazo”, comentou o Dr. Carl.

Esperança

Desde o primeiro estudo, no qual os Drs. Carl e David usaram as células T CAR, dois dos três pacientes que tratados por eles ainda estão vivos ─ 10 anos depois.

Doug é um deles, e ele ainda faz um monitoramento trimestral para avaliar a recidiva. Até hoje nenhum exame indicou sinais de retorno do câncer.

Depois de entrar em remissão, Doug passou os seis a nove meses seguintes recuperando sua saúde e força.

“Conclui que, se eu tive esse tratamento incrível, que salvou a minha vida, eu tinha a obrigação permanecer vivo”, ele disse. “Eu não podia morrer de algo como um infarto!”

Ele participou de corridas de longa distância e completou seis meias-maratonas, se envolveu com a Leukemia and Lymphoma Society, participando da arrecadação de recursos e ajudando pacientes recém-diagnosticados. Ao longo dos anos, ele também fez palestras para pesquisadores, pessoas com câncer e profissionais de saúde.

Doug está com 73 anos, e hoje ele se admira com velocidade que o campo da terapia com células T CAR progrediu.

“Se você tivesse câncer há 20 anos as suas perspectivas não eram tão boas quanto hoje em dia. Em 2010 as pessoas ainda não acreditavam na terapia com células T CAR”, contou Doug. “Meu objetivo ao contar a minha história sempre é transmitir uma mensagem de esperança.”

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