Nota da editora: Veja as últimas notícias e orientações sobre a covid-19 em nosso Centro de Informações sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2.
Na semana em que o Brasil ultrapassou a marca de dois milhões de casos confirmados de covid-19, ficando atrás apenas dos Estados Unidos na contagem mundial, diversos estados brasileiros anunciaram esforços para aumentar a realização de testes ─ que se mantém baixa desde o início da pandemia.
O empenho em aumentar a testagem e sair da condição de um dos países com menor quantidade de exames para detectar o SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), o vírus causador da covid-19, é fortemente influenciado pela necessidade de estabilizar as curvas de contágio e, assim, garantir a reabertura da economia. No estado de Goiás, o governo anunciou a oferta de testes por reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa (RT-PCR, sigla do inglês, Reverse Transcription Time Polymerase Chain Reaction) para pessoas com sintomas gripais e casos leves em 78 municípios. O plano é testar dois terços da população.
No estado de São Paulo teve início em Vila Jacuí, zona leste da capital paulista, um programa de testagem em massa voltado para as regiões onde houve maior número de mortes. A estratégia adotada consiste em primeiro realizar o teste sorológico (resultado em até 48 horas) para detectar se a pessoa teve contato com o vírus, e se o resultado for positivo, então realizar o teste por RT-PCR para descobrir se o vírus está ativo. Quem apresenta resultado positivo é orientado a ficar em isolamento, sendo monitorado por equipes do Programa Saúde da Família durante duas semanas. O programa deve chegar às regiões com muitos casos, com dificuldade de acesso aos serviços de saúde e saneamento e a outras cidades do estado.
Em relação ao programa que está sendo implementado em São Paulo, o Dr. Gonzalo Vecina, ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo e professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), considera que usar testes sorológicos para encontrar pessoas infectadas e rastrear seus contatos é como buscar uma agulha no palheiro: "Se der positivo, a prefeitura fará outro teste, o RT-PCR, que detecta o vírus vivo, mas quem tem anticorpo já não tem mais o vírus", ponderou o especialista. Para interromper a cadeia de transmissão, as pessoas que estão com o vírus ativo precisam ser identificadas e isoladas na fase em que a doença é transmissível.
No Rio de Janeiro, as autoridades sanitárias também estão aumentando a quantidade de testes sorológicos. Esses testes identificam quem teve contato com o vírus ou manifestou a doença e produziu anticorpos. Para isso, analisam uma amostra de sangue em busca de anticorpos imunoglobulina M ou G (IgM e IgG) contra o SARS-CoV-2. Como o organismo da pessoa que teve contato com o novo coronavírus demora um período para começar a produzir esses anticorpos, recomenda-se que o teste seja realizado de 7 a 10 dias após o início dos sintomas. A realização antes desse período aumenta as chances de resultados falsos-negativos.
"Mas a sensibilidade máxima só é atingida após duas a três semanas", explicou ao Medscape o Dr. Celso Granato, infectologista e diretor clínico do Grupo Fleury. O médico disse que é bem pouco provável que a pessoa esteja ainda transmitindo o vírus quando o teste sorológico passa a dar positivo.
"Há uma coincidência temporal entre a parada de produção de vírus infectante (sétimo dia) e o início da positividade da sorologia (entre 7 e 10 dias)", disse o Dr. Celso.
Outra iniciativa para aumentar a testagem é a instalação de unidades "drive thru" para oferecer testes rápidos. O teste rápido é feito a partir da coleta de uma gotinha de sangue do dedo e o resultado fica pronto em cerca de 20 minutos. Assim como os sorológicos, esse tipo de teste detecta a presença de anticorpos no sangue – em geral, os anticorpos IgM podem ser identificados após o quinto dia de infecção, enquanto os anticorpos IgG são verificáveis a partir do décimo dia. A chance de resultados falsos-positivos ou negativos é maior com o uso destes testes. Cidades como Santos, em São Paulo, e Fortaleza, no Ceará, entre outras, adotaram essa solução para a oferta de testes gratuitos. O formato também é usado por laboratórios particulares para vender testes rápidos, igualmente disponíveis em farmácias e drogarias.
De acordo com o Dr. Luiz Cláudio (Lula) Arraes, professor do Departamento de Medicina Tropical da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do comitê científico do Consórcio Nordeste, os dados revelados pelos testes sorológicos podem mostrar o crescimento da pandemia, mas não retratam o que está acontecendo no momento.
"Se o resultado dá positivo, a pessoa pode ter sido contaminada em fevereiro ou em qualquer outro momento. Não sabemos ainda por quanto tempo duram os anticorpos", disse o médico.
"Na prática, os testes para anticorpos não ajudam a interromper a cadeia de transmissão", afirmou o Dr. Diego Xavier, epidemiologista e pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que também participa da iniciativa Monitora Covid-19.
"Com o uso em massa desses testes, provavelmente haverá um aumento muito grande dos casos, mas não há como saber se são casos antigos ou mais recentes, a positividade desses testes não ajuda nas decisões sobre flexibilização do isolamento e reabertura da economia."
Feitos de modo aleatório, sem o cálculo proporcional em relação ao volume total de testes, os exames sorológicos também não esclarecem sobre a evolução da pandemia: "10% de positividade em 1.000.000 de testes é diferente de 10% em 100.000 testes." A dificuldade em obter informações sobre o total de testes colabora para que os dados fiquem ainda mais frágeis.
"Temos acesso ao número de testes sorológicos, testes rápidos e RT-PCR distribuídos pelo Ministério da Saúde, mas há os testes privados, sobre os quais não temos a menor ideia, e os exames comprados pelos estados", disse o pesquisador. Se um indivíduo testar positivo na farmácia, o resultado passa a fazer parte das estatísticas de casos confirmados, no entanto, nem todos os testes negativos feitos serão informados, o que prejudica as estimativas.
Um bom exemplo do uso dos testes sorológicos, a partir de dados populacionais, é a pesquisa Epicovid-19, coordenada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul. Os pesquisadores utilizaram os testes para conhecer a prevalência da doença em domicílios sorteados em 133 municípios brasileiros.
"Olhando a prevalência que essa pesquisa está mostrando, cerca de 5% da população brasileira já teve a doença ou contato com o vírus, o que equivale a 10.000.000 de pessoas. Isso mostra o tamanho da subnotificação. Porém, uma análise dos dados relatados entre 15 e 35 dias após o início dos sintomas mostrou que os testes sorológicos revelaram com precisão > 90% das pessoas que tiveram covid-19 ou contato com o SARS-CoV-2. O resultado dos testes foi equivocado em 1% a 2% das pessoas sem a infecção.
A qualidade dos trabalhos analisados impressionou negativamente os pesquisadores. Eles relataram que os estudos foram pequenos e não informaram seus resultados completamente. Além disso, mais da metade foi disponibilizada antes da revisão por pares (publicações conhecidas como pre-prints). E mais: "Como os dados são quase todos de pacientes hospitalizados, não sabemos realmente com que precisão eles identificam a covid-19 em pessoas com sintomas leves ou inexistentes ou em quem foi testado mais de cinco semanas após o início dos sintomas", escreveu Jon Deeks, chefe do Grupo de Pesquisa de Avaliação de Testes da University of Birmingham, no Reino Unido, que liderou a revisão. Enfim, há mais perguntas do que respostas sobre os testes de anticorpos contra o SARS-CoV-2 disponíveis. O Brasil testa pouco diante da quantidade de casos confirmados que temos", disse o Dr. Gonzalo.
Mais questões pairam sobre os testes disponíveis para detectar anticorpos. Recentemente, a sensibilidade dos testes sorológicos foi alvo de uma revisão das pesquisas disponíveis até abril de 2020.
"O estudo, feito por pesquisadores de todo o mundo ligados aos centros Cochrane, procurou responder se esses testes são precisos o suficiente para diagnosticar pessoas com ou sem sintomas de covid-19", informou o Dr. Álvaro Nagib Atallah, professor titular e chefe da Disciplina de Medicina de Urgência e Medicina Baseada em Evidências da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Centro Cochrane do Brasil.
Os pesquisadores constataram que a sensibilidade dos testes sorológicos está relacionada com a data em que o teste foi feito. Os testes de anticorpos IgG e IgM identificaram corretamente apenas 70% das pessoas infectadas pelo vírus até o momento.
Interrupção da cadeia de transmissão
Na opinião de especialistas entrevistados pelo Medscape, o teste mais adequado e padrão-ouro para diagnosticar as pessoas infectadas e interromper a cadeia de transmissão é o RT-PCR.
"Do ponto de vista da saúde pública, o interesse imediato é saber quem vai ter a doença e tirar essas pessoas de circulação para diminuir a taxa de transmissibilidade com o teste molecular, o RT-PCR", esclareceu o Dr. Gonzalo.
"Muitos estados continuam investindo no teste rápido, mas o ideal seria o RT-PCR para monitorar o processo de reabertura, como outros países fizeram", concordou o Dr. Diego.
Esses exames, também chamados de testes moleculares, apontam a presença do vírus ativo no organismo no período em que a pessoa é transmissora da doença. A análise busca o material genético do microrganismo em amostras de tecido recolhidas do nariz ou da garganta com a ajuda de uma espécie de haste flexível (swab). Segundo o Dr. Celso, o RT-PCR é mais sensível se for feito entre o terceiro e o sétimo dias após o início dos sintomas.
"Há casos descritos de RNA detectável do vírus até 43 dias, mas muitos trabalhos confirmam que se trata de material sem capacidade infectante. A infecção costuma se restringir à primeira semana", explicou o Dr. Celso.
Até bem pouco tempo, a orientação do Ministério da Saúde restringia esses testes aos pacientes graves internados. "No Brasil, a restrição de insumos e políticas equivocadas, sobretudo do governo federal, permitiu que os testes só fossem acessíveis aos pacientes graves. Nem os pacientes com sintomas mais leves puderam fazer esse teste", disse o Dr. Lula.
Os números mais recentes sobre a realização do exame que identifica o vírus ativo preocupam. Dados do último boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde informam que o governo distribuiu, até 13 de julho, 4.923.956 testes RT-PCR. No mesmo relatório, informações do sistema Gerenciador de Ambiente Laboratorial (GAL) mostram que foram analisados 1.683.709 exames para o diagnóstico molecular do vírus até a data. Por que a maior parte dos testes distribuídos não foi realizada? Uma das explicações está no próprio boletim, que aponta a falta de swabs para coleta de amostras nasais ou da garganta, necessárias para o teste molecular.
Mais grave ainda é o fato de o Ministério da Saúde ter distribuído os kits de RT-PCR incompletos, sem um regente indispensável ao processamento das amostras. Trata-se de uma substância usada para extrair o RNA do vírus.
"No tempo do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, foram importados um milhão de testes. A Fiocruz está entregando até setembro, parceladamente, mais 10 milhões de testes que ela mesma fabricou. Mas uma coisa é o teste, outra é o tubo com cotonete, e outra coisa são os kits de extração e amplificação. Tudo isso é comprado separadamente", explicou ao Medscape o Dr. Gonzalo; ou seja, por inúmeros problemas de mercado, mas também por falta de coordenação para a compra e distribuição dos insumos necessários, os testes estão guardados nos almoxarifados dos laboratórios públicos nos estados. Especialistas entrevistados pelo Medscape disseram que há milhares de testes moleculares parados no Ministério da Saúde pelo mesmo motivo. Sob a justificativa da falta global de insumos, a pasta informou que a compra de cerca de 15 milhões de unidades desse extrator de RNA está em andamento.
A capacidade de processamento dos laboratórios públicos espalhados pelo país é mais um aspecto que interfere na agilidade das análises que o controle da pandemia exige. Em abril, houve um momento em se formou uma fila de espera por resultados de 17.000 testes de covid-19 no estado de São Paulo. Isso motivou a criação da chamada Plataforma Butantan, envolvendo diversos centros de análises públicos para zerar a demanda. No entanto, apesar de acordos firmados pelo Ministério da Saúde com uma rede privada para ampliar a capacidade nacional de processamento, ela continua reduzida frente à demanda crescente. Durante o mês de junho, a rede de Laboratórios Centrais de Saúde Pública, os Lacens, processou cerca de 14.500 testes por dia. É pouco em relação à meta a estipulada pelas autoridades sanitárias, de 70.000 exames diários. O panorama deve melhorar no final de julho se entrarem em funcionamento duas centrais de processamento em Fortaleza e na cidade do Rio de Janeiro, com capacidade total para 25.000 testes por dia ─ ambas financiadas por recursos do projeto Todos pela Saúde em parceria com a Fiocruz.
"No final de julho o país terá capacidade para realizar em torno de 60.000 testes por dia, o que não é ruim, mas está longe do que a Alemanha faz, um país com menos da metade da população brasileira que realiza em torno de 150.000 testes por dia", destacou o Dr. Gonzalo.
Os efeitos daninhos da falta de coordenação nacional e de entendimento entre estados e municípios infiltram as mais diversas frentes de combate à pandemia.
"Uma das consequências disso é que os dados são extremamente heterogêneos, dependendo das iniciativas dos estados", disse o Dr. Lula. "Passados quatro meses da mais grave crise sanitária, econômica e social do século, enfrentamos uma tremenda falta de dados concretos para saber como a pandemia evolui. Estamos tateando. Também há como eliminar focos se você não estiver testando nos locais. E não estamos fazendo isso", disse. Como cada estado adota uma estratégia, o panorama nacional é uma espécie de colcha de retalhos.
No Brasil, a flexibilização das medidas de isolamento social é orientada pelas taxas de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTI) e pela medição da mobilidade social. O terceiro critério, que seria a redução do número de casos, é profundamente prejudicado pela baixa testagem e escassez de exames RT-PCR.
Para o Dr. Lula, uma abertura racional e responsável deveria ser acompanhada pela testagem com RT-PCR. "Um exemplo concreto da necessidade de se fazer esse rastreamento é a França. Lá foi aberta uma escola e em seguida uma criança foi diagnosticada com coronavírus, fizeram o mapeamento dos contatos e possíveis contatos de contatos, com testagem de 80 pessoas por RT-PCR, foram identificados três resultados positivos e essas pessoas foram isoladas, a escola pode reabrir com segurança a partir dessas medidas. Outro exemplo foi Beijing, na China, onde 79 casos foram detectados e ocorreu uma mobilização gigantesca. Milhares de profissionais aplicaram mais de 12.000 testes, áreas foram fechadas e depois reabertas. No Brasil não vimos isso acontecer ainda em canto algum."
A falta de uma política de testagem no Brasil é uma preocupação antiga que se perpetua. "Muitos países usufruíram dos resultados da testagem e estão aprendendo muito. Na Inglaterra, se imaginava que seria possível chegar a todas as pessoas que tiveram contato com quem teve a doença e identificar aqueles na fase aguda, isolar e evitar a transmissão. Esse era o racional. Na prática, não foi isso que se viu. Os ingleses se depararam com o fato de que apenas de 30% a 40% dos familiares aceitavam dar informações sobre as pessoas com as quais tiveram contato", contou o Dr. Álvaro. Por isso, na opinião do especialista, além de investir na testagem em massa, é essencial fazer uma ampla campanha de informação para que o cidadão responda aos questionamentos dos médicos de família e se sinta também responsável pela contenção do vírus.
Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube
Medscape Notícias Médicas © 2020 WebMD, LLC
Citar este artigo: Brasil busca aumentar testes, mas continua sem plano contra a covid-19 - Medscape - 22 de julho de 2020.