Uma pandemia em meio a um pandemônio

Mônica Tarantino

Notificação

15 de junho de 2020

Neste artigo

Nota da editora: Veja as últimas notícias e orientações sobre a Covid-19 em nosso Centro de Informações sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2 .

As próximas semanas serão dramáticas para o Brasil. O país é o segundo em número de casos de Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019) no mundo. Em 14 de junho, as estatísticas oficiais informavam 867.624 casos confirmados, 43.332 óbitos e 388.492 pessoas recuperadas. Durante as últimas semanas, o país apresentou uma média de 1.000 óbitos confirmados por dia, sendo que em um dia atingiu o recorde de 1,3 mil mortes confirmadas. Por causa da subnotificação e da baixa testagem, os números reais são desconhecidos.

Para dificultar ainda mais o controle da situação de pandemia, o Ministério da Saúde passou a fazer mudanças na publicação do balanço dos casos. Primeiro, mudou o horário de divulgação das 17 horas no início da pandemia para as 19h e depois 22 horas, impondo dificuldades ao trabalho da imprensa. Depois, na sexta-feira (5), passou a apresentar apenas os casos novos, sem mostrar o número total de infectados e de óbitos, o que gerou fortes críticas da comunidade científica, de autoridades sanitárias e da imprensa, aumentando a tensão sob a qual vive o país.  Também haviam sido tirados do site oficial links para downloads de dados em formato de tabela, como a curva de casos novos por data de notificação e por semana epidemiológica. No domingo (7), depois de intensos protestos e questionamentos do Ministério Público, o governo informou que voltaria a divulgar os balanços, mas apresentou números conflitantes, corrigidos algumas horas depois. Ao longo do dia 8, o painel oficial oferecia apenas os dados do dia, sem os totais. Outra decisão grave do governo é divulgar apenas os óbitos ocorridos no dia, sem incluir no dado as mortes registradas em dias anteriores cujo resultado da confirmação laboratorial tenha sido informado na data da divulgação. Isso gera uma grande defasagem e desorienta o combate à pandemia. A medida é considerada como uma manobra do governo para distorcer os dados e abrir forçosamente a economia. Em entrevista coletiva concedida no dia (8), os técnicos do governo afirmaram que lançarão nos próximos dias uma plataforma com todos os dados, com destaque para os óbitos do dia. No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal determinou que o Ministério da Saúde voltasse a divulgar os dados acumulados do coronavírus.

"O Ministério da Saúde está sofrendo uma ocupação militar que acredita em guardar segredos na guerra. Não deixar que os números da pandemia cheguem à imprensa é uma medida tacanha e burra. É como assassinar o carteiro para não levar a má notícia. Esses números requerem transparência", disse o ex-ministro da Saúde Dr. Luiz Henrique Mandetta, demitido em 16 de abril, em entrevista no domingo (7) à noite ao canal de televisão Globonews. O Dr. Mandetta havia estabelecido uma rotina diária de entrevistas coletivas em uma política de transparência. Essas entrevistas foram canceladas na gestão atual do ministro interino, o general Eduardo Pazuello.

De forma independente, universidades e organizações e sites começaram a divulgar os números da pandemia. O Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) anunciou que divulgará diariamente as informações no final da tarde. Em resposta às restrições no acesso aos dados impostas pelo governo, os maiores veículos de comunicação do país decidiram unir forças para coletar informações nas secretariais estaduais de saúde de 26 estados e Distrito Federal para divulgar em conjunto números sobre infectados e mortos todos os dias às 20 horas. É algo inédito.

"Um Ministério que tortura números cria um mundo paralelo", disse presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. O diretor de emergências da Organização Mundial de Saúde (OMS), Dr. Michael Ryan, pediu em entrevista coletiva na sede da organização na segunda-feira (8) que o Brasil tenha transparência na divulgação dos dados.

"É muito importante, ao mesmo tempo, que as mensagens sobre transparência e divulgação de informações sejam consistentes, e que nós possamos contar com os nossos parceiros no Brasil para fornecer essa informação para nós, mas, mais importante, aos seus cidadãos. Eles precisam saber o que está acontecendo", disse o Dr. Michael. Ele espera que o país encontre rapidamente soluções para a confusão nas informações. A entidade disse que continuará apoiando o país, onde a situação é muito preocupante.

O aumento dos casos em Brasil, Peru, Chile, Equador e Venezuela coloca a América Latina na condição de epicentro mundial da doença. A situação irá se agravar ainda mais até o Brasil atingir o pico da curva epidêmica, que parece ainda não ter chegado. Uma estimativa para a América divulgada no final de maio pelo Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), ligado à University of Washington, nos Estados Unidos (EUA), calcula que o número de mortos no Brasil deverá ultrapassar 165.960 no começo de agosto.

O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Dr. Tedros Ghebreyesus, tem reforçado sua preocupação com a intensa transmissão do coronavírus no Brasil, e com a urgência em adotar medidas eficientes de distanciamento social para frear a rápida disseminação da doença. A contaminação entre profissionais da saúde também é elevada, com 31,7 mil casos confirmados e mais de 200 mil pessoas afastadas com suspeita de ter a doença. Segundo o Conselho Internacional de Enfermeiros, as mortes de enfermeiros e profissionais da saúde estão acima de outros países com alta transmissão do vírus.

"Em muitos países, quando chega a um certo nível, ele [o vírus] se move como fogo em mato. Isso aconteceu na China, em Wuhan, aconteceu em alguns países da Europa, e agora está acontecendo no Brasil", disse o Dr. Tedros em uma coletiva realizada em 25 de maio.  Na sexta-feira (5), o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, anunciou à imprensa que o país deixará a organização se a OMS não abandonar o que chamou de "viés ideológico".

A alta velocidade de transmissão do vírus e as dificuldades de implementação do distanciamento social empurram os brasileiros em direção a uma crise sanitária sem precedentes. O país entra em 8 de junho na segunda semana de flexibilização das medidas mais rígidas de distanciamento social adotadas em capitais e cidades com elevada taxa de transmissão. Em alguns lugares, como a metrópole São Paulo, a quarentena foi estendida até 28 de junho, porém acompanhada de medidas de flexibilização dos serviços definidas pelo governo estadual (como a reabertura de shoppings desde que adotem medidas de precaução). A retomada dos transportes coletivos e serviços tem provocado reações de especialistas e prefeitos de municípios da área metropolitana das grandes cidades. O ponto é o impacto de decisões setoriais na capacidade do sistema de saúde, que é acessado por moradores das diversas cidades da região.

Diante desse cenário complexo, não é exagero dizer o país poderá ter a maior quantidade de mortos, em números absolutos do mundo. Como o Brasil chegou a essa situação calamitosa? Para tentar entender um pouco a gravíssima situação sanitária que ameaça os brasileiros, a reportagem do Medscape entrevistou personalidades influentes na formulação de políticas de saúde ao longo das últimas décadas. O resultado deste esforço de reportagem você lê a seguir.

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