Violência doméstica infantil durante a quarentena

Dra. Sabrine Teixeira Grünewald, MSc

Notificação

5 de junho de 2020

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No Brasil, em 2017, foram registrados 126.230 casos de violência contra crianças e adolescentes com até 19 anos de idade. Cerca de 24% desses crimes ocorreram contra crianças com menos de quatro anos de idade, incapazes de reconhecer ou denunciar a violência. Mas, apesar de assustadores, esses números ainda são subestimados. A subnotificação da violência na infância e na adolescência é uma realidade.

No dia 18 de maio, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou uma nota de alerta intitulada "Combate ao Abuso e à Exploração Sexual e Outras Violências Contra Crianças e Adolescentes em Tempo da Quarentena por Covid-19". O dia 18 de maio é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil, data escolhida em memória a uma criança de oito anos que foi assassinada em 1973.

Na nota de alerta, os especialistas da SBP resumem e discutem o problema da violência contra a criança no país, mas destacam uma questão que surge este ano: a pandemia de Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019) e as medidas de isolamento social instituídas em consequência trazem um risco ainda maior.

Segundo os autores, a quarentena trouxe fragilidades para os lares das crianças brasileiras: elas estão confinadas com seus pais/responsáveis, que muitas vezes estão irritados e impacientes, e podem ter dificuldades em cuidar dos filhos em período integral. Além disso, os adultos podem apresentar uma sobrecarga de estresse oriunda da incerteza quanto ao futuro, do desemprego ou da queda da renda familiar e/ou do adoecimento de parentes.

Essas crianças também perderam contato com possíveis observadores da violência doméstica como professores, vizinhos, outros familiares, pediatra e/ou unidades de atendimento médico.

Para a Dra. Renata Dejtiar Waksman, pediatra, membro do Departamento Científico de Segurança da Criança e do Adolescente da SBP e coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência contra Crianças e Adolescentes da Sociedade de Pediatria de São Paulo, esses observadores devem procurar se manter como uma rede protetora: "Todos os que têm contato com a criança e o adolescente, mesmo que só virtual, entram com uma escuta atenta e sensível", disse a médica ao Medscape por e-mail.

"Aqueles que já sabiam ou desconfiavam de comportamentos agressivos dos pais em relação aos filhos devem tomar várias atitudes, como denunciar para os órgãos competentes."

O artigo da SBP destaca que os números da violência doméstica no Brasil vêm aumentando desde o início da quarentena na maioria dos estados. Por exemplo, o plantão judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro informou no dia 23 de março, ter registrado um aumento de 50% no número de denúncias de vítimas de violência doméstica e familiar. Dados semelhantes se espalham por todo o país. Isso significa, no mínimo, que as crianças estão presenciando violência em ambiente domiciliar com maior frequência, o que é desastroso para o psiquismo infanto-juvenil.

Outro ponto destacado é que, com a permanência em casa, as crianças estão mais expostas ao mundo digital e suas perversões, incluindo aliciamento sexual, pornografia, pedofilia, indução de autoagressões por meio de desafios virtuais. Sobre esse assunto, a SBP também publicou um documento sobre a utilização saudável de telas digitais em tempos de pandemia.

Segundo os especialistas da SBP, o número de denúncias de violência contra a criança aos conselhos tutelares e delegacias foi reduzido a um quinto ao dos meses anteriores à quarentena. Além do afastamento da criança dos potenciais denunciantes da violência – professores, vizinhos, pediatra – existe também uma maior dificuldade de busca ativa de casos pelas autoridades, e de acompanhamento das famílias já identificadas como de risco, devido à falta de pessoal e à menor estrutura de apoio aos sistemas de proteção e apuração de denúncias durante a pandemia.

"As pessoas perversas, psicóticas, sádicas, pedófilas, se sabem menos vigiadas, e que suas vítimas estão menos protegidas", diz o texto da SBP. Elas "não deixarão de buscar suas vítimas, no mundo real ou virtual."

Como suspeitar da violência

Em um protocolo de atendimento a vítimas de violência publicado em 2018, a SBP destaca como os médicos que atendem crianças podem suspeitar que algo está errado. Por exemplo, o médico deve suspeitar de pais que omitem total ou parcialmente a história de algum trauma ou que mudam a história quando perguntados mais de uma vez, de explicações contraditórias ou que mudam de um familiar para outro e da demora inexplicável na procura de atendimento médico.

Além disso, algumas condições sociais familiares são consideradas de maior risco de violência contra a criança ou adolescente, tais como uso de álcool ou outras drogas, história de violência doméstica contra outros membros da família, doenças psiquiátricas, história de maus-tratos aos pais durante a infância deles, perda de controle emocional por parte dos familiares ou expectativa irreal dos pais em relação ao filho.

No exame físico, o médico deve estar atento à presença de lesões que não se justifiquem pelo mecanismo do trauma relatado; que não sejam compatíveis com o desenvolvimento neuropsicomotor da criança; que estejam em múltiplas partes do corpo, em localizações não usuais ou em áreas usualmente cobertas ou protegidas; além de lesões em diferentes estágios de evolução e cicatrização.

"É importante ressaltar que todos esses sinais de alerta não devem ser avaliados e interpretados de maneira isolada na tentativa de identificar uma possível situação de violência, uma vez que podem estar presentes em associação", explicou a Dra. Renata.

Abordagem por telemedicina

Com a autorização do Conselho Federal de Medicina para a realização de consultas médicas por meio de ferramentas de telemedicina, surge a possibilidade de o médico se deparar com algum caso suspeito de violência em uma consulta realizada virtualmente.

Para a Dra. Renata, é importante destacar que o pediatra deve utilizar a telemedicina respeitando algumas premissas, como a segurança das informações e o cumprimento das normas e orientações do Ministério da Saúde sobre notificação compulsória, o que inclui os casos de violência contra crianças.

"É uma situação muito delicada e requer avaliação presencial posterior, para elucidação maior e mais completa do que está acontecendo", afirmou.

"O pediatra deve observar o comportamento, postura, olhar e gestos de todos que estiverem participando da consulta, e, se possível, deve conversar em separado e coletar informações com todos: pai, mãe, irmão, criança", orientou a Dra. Renata.

"Se as versões forem conflitantes ou o pediatra sentir que há algo a mais, deve convocar imediatamente a família para consulta presencial, e se negarem comparecimento, deve fazer a notificação de suspeita de violência."

A ficha de notificação de violência está disponível no site do Ministério da Saúde. Além da notificação, o pediatra que suspeitar de violência deve informar ao Conselho Tutelar ou a uma Delegacia que atenda a região de moradia da suposta vítima.

"Nosso dever maior, de proteger crianças e adolescentes, é moral, legal e ético", concluiu a Dra. Renata.

A Dra. Renata informou não ter conflitos de interesses relevantes.

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