COMENTÁRIO

A solidão e o coração

Dr. Mauricio Wajngarten; Dr. Fabiano M. Serfaty

Notificação

21 de fevereiro de 2020

A solidão é um problema cada vez mais comum em todo mundo uma série de estudos já demonstram associação à várias doenças crônicas como: doenças cardiovasculares e a obesidade. Uma publicação deste ano demonstrou uma forte associação entre solidão e mortalidade tanto em homens como em mulheres. [1] Os resultados demonstram que a solidão deve ser uma prioridade na estratificação de risco cardiovascular, assim como nas medidas de prevenção na saúde pública. Neste bate-papo entre os advisors do Medscape Dr. Mauricio Wajngarten e Dr. Fabiano Serfaty, ambos compartilham as evidências e também a própria experiência em relação ao tema.

Dr. Fabiano Serfaty: Como você avalia e trata a solidão no seu consultório?

Dr. Mauricio Wajngarten: A solidão e o isolamento social são muito frequentes, e também entre os jovens. Alguns dizem que vivemos uma epidemia de solidão que pode afetar perfil psicológico e adesão às orientações médicas com consequências para a saúde. É um real fator de risco não reconhecido como tal.

Hoje temos vários instrumentos e questionários para avaliar fatores como estresse, ansiedade, depressão, hostilidade, status socioeconômico, apoio social, estresse psicossocial e personalidade tipo D – pessoas introspectivas, fechadas, pouco sociáveis. Mas, como opção bem prática, existe uma avaliação simplificada dos fatores de risco psicossociais [2] com algumas poucas perguntas. Quanto à solidão, duas perguntas simples constam dessa avaliação: Você está vivendo em paz? Sente falta de um confidente próximo? Pode ajudar. É um bom começo.

O tratamento ou combate à solidão é complexo, depende da pessoa e das circunstâncias. Existem muitas propostas para tentar combater a solidão, como por exemplo: participar em atividades voluntárias, frequentar academias, clubes, aulas de dança, cursos, adotar de animal de estimação, etc. Pertencer a uma comunidade religiosa também pode promover apoio social e reduzir a solidão. Por outro lado, a tecnologia e as mídias sociais, tão em moda, parecem não beneficiar àqueles que se declaram solitários.

Dr. Fabiano Serfaty: Como prevenir este problema tão grave?

Dr. Mauricio Wajngarten: A maior dificuldade é que a solidão ou o isolamento social quase sempre fazem parte de um "pacote" de problemas. Assim, para planejar a prevenção de acordo com o perfil do paciente é fundamental avaliar outros fatores de risco psicossociais, além da solidão. [3]

Mas, é preciso reconhecer, não é fácil mudar comportamentos, pois isso envolve aspectos individuais, culturais e ambientais, entre vários outros. Devemos procurar, em cada paciente, experiências, pensamentos, preocupações e as circunstâncias da vida cotidiana. Uma boa conversa, com aconselhamento individualizado é a base para promover motivação e compromisso com a melhora do comportamento. As decisões devem ser compartilhadas com pacientes e cuidadores. É muito importante ajudar o paciente a estabelecer metas realistas que depois podem ser ampliadas.

Quando necessário, eu encaminho a psicólogo ou psiquiatra ou indico tratamento farmacológico para controle de depressão, ansiedade e hostilidade.

Dr. Fabiano Serfaty: Temos evidências de que a qualidade dos relacionamentos é o que mais importa quando se fala sobre solidão. [4] Quais são as implicações das mudanças nos relacionamentos ao longo do tempo?

Dr. Mauricio Wajngarten: A vida é dinâmica e as mudanças nos relacionamentos são naturais. E essas mudanças tendem a afastar uns dos outros. Por exemplo, a aposentadoria pode afastar quem conviveu durante muitos anos. As limitações físicas podem restringir o contato com a "turma" do esporte. Ainda que você busque manter os vínculos, cada um "toca a própria vida" e os vínculos enfraquecem. A família torna-se, então, a sustentação do apoio social. Mas, devemos ter as expectativas bem calibradas quanto à atenção que os familiares podem nos dedicar.

Um estudo do IBM Institute for Business Value diz que precisamos ter um novo tipo de "aldeia" e reformular toda a sociedade. Por exemplo, seria interessante incentivar áreas de convivência compartilhadas entre idosos e jovens, criar opções de educação e trabalho para aposentados, facilitar a mobilidade dos idosos para manter a independência e a participação social com a comunidade. Tudo isso não é fácil porque precisa ser feito em escala, mas com personalização.

Dr. Fabiano Serfaty: A solidão está associada a um risco aumentado de desenvolver as doenças cardíacas, independentemente dos fatores de risco tradicionais para doenças cardiovasculares. [5,6] Quais estratégias de prevenção primária visando a solidão podem ajudar a prevenir doenças cardiovasculares?

Dr. Mauricio Wajngarten: Antes de mais nada, é importante reconhecer que os profissionais dispõem de tempo limitado. As estratégias, em geral, não valorizam adequadamente o papel deles, que é essencial para a adesão. Provedores e pacientes frequentemente discordam das metas ou condutas, e doenças crônicas interferem em muitos aspectos da vida do paciente. Além disso, a comunicação adequada é fundamental. Devemos informar claramente benefícios, efeitos adversos e duração do tratamento, evitando termos técnicos e excesso de informações. Durante o acompanhamento do paciente, o monitoramento da adesão deve enfatizar a motivação, sem julgamentos ou críticas. As estratégias incluem aconselhamento, coaching, e terapias individuais ou em grupos. Podem ser sugeridas e acompanhadas pelo médico no consultório ou, quando possível, envolver uma equipe multidisciplinar, com atuação presencial ou à distância. [2,3]

Dr. Fabiano Serfaty: Você acha que a solidão deveria ser incluída na rotina da avaliação de todo paciente no consultório?

Dr. Mauricio Wajngarten: Essa é uma pergunta interessante. Respondendo objetivamente, acho que é importante incluir a avaliação da solidão. Com as duas perguntas simples, ou com uma boa conversa que permite ao próprio paciente se sentir confortável para falar de solidão. Mas – e sempre há um "mas" –, isso não é tão simples.

Em 2014, a National Academy of Medicine dos Estados Unidos recomendou a obtenção rotineira, durante as consultas, de informações sobre conexões sociais e isolamento social. Porém, poucos clínicos seguiram essa recomendação. Embora existam escalas válidas para medir a solidão, elas não são usadas regularmente em consultórios. Com o tempo de consultas cada vez mais espremido (pelas obrigações burocráticas) ficamos desestimulados a aplicar escalas longas e trabalhosas tão recomendadas na geriatria/gerontologia. Na verdade, os estudos sobre o papel dos nossos consultórios no tratamento – talvez tratamento não defina bem o que podemos fazer – da solidão são poucos e limitados. Mesmo assim, devemos abordar o assunto e os demais aspectos que compõem o "pacote" de riscos psicossociais, para no mínimo tentar melhorar a qualidade de vida dos nossos pacientes. Afinal, o envelhecimento desejável, mais do que saudável, deve ser ATIVO e PARTICIPATIVO e a solidão sabota esse objetivo.

Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube

Comente

3090D553-9492-4563-8681-AD288FA52ACE
Comentários são moderados. Veja os nossos Termos de Uso

processing....