Filadélfia — Tido por muitos como a última chance para determinar o verdadeiro valor de revascularização na cardiopatia isquêmica estável, o ensaio clínico ISCHEMIA não conseguiu apresentar menos eventos cardiovasculares maiores com o uso da estratégia invasiva precoce quando comparado ao melhor tratamento clínico.
Durante uma mediana de 3,3 anos de acompanhamento, as curvas de Kaplan-Meier para o desfecho primário – um composto de morte de origem cardiovascular (CV), infarto agudo do miocárdio (IAM), hospitalização por angina instável, hospitalização por insuficiência cardíaca ou reanimação após parada cardíaca – foram semelhantes entre as estratégias invasiva e conservadora (razão de risco ou hazard ratio, HR, de 0,93; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 0,80 a 1,08; P = 0,34).
As curvas se cruzaram aos dois anos de acompanhamento, com valores absolutos favorecendo em 1,9% o melhor tratamento clínico em seis meses e favorecendo a angiografia precoce seguida de intervenção coronariana percutânea (ICP ou cateterismo) ou cirurgia de revascularização em quatro anos em 2,2% (13,3% versus 15,5%).
O mesmo padrão foi observado para o grande desfecho secundário de morte de origem cardiovascular ou infarto agudo do miocárdio (11,7% vs. 13,9%; HR ajustada, HRa, de 0,90; IC de 95%, de 0,77 a 1,06; P = 0,21).
O número de mortes por qualquer causa também foi baixo e semelhante entre os grupos das condutas invasiva e conservadora (6,5% vs. 6,4%; HRa = 1,05; IC de 95%, de 0,83 a 1,1). A probabilidade de benefício de pelo menos 10% com a revascularização na morte por todas as causas foi menor que 10%, de acordo com uma análise bayesiana pré-especificada, segundo a diretora do estudo, a Dra. Judith Hochman, médica da New York University School of Medicine, nos Estados Unidos (EUA).
Em seu favor, a revascularização proporcionou maior alívio da angina do que no melhor tratamento clínico, com metade dos pacientes sem angina em um ano vs. apenas 20% dos pacientes fazendo o melhor tratamento clínico isolado, disse o Dr. John Spertus, médico do Saint Luke's Mid America Heart Institute nos EUA, na mesma sessão late-breaking lotada do estudo, nas sessões científicas de 2019 da American Heart Association (AHA).
"A mídia social está falando muito sobre os 100 milhões de dólares gastos; calculamos que se os pacientes assintomáticos não fizessem cateterismo poderíamos poupar mais de 500 milhões de dólares todo ano", disse a Dra. Judith.
"Este não foi um ensaio clínico pragmático e simples; tudo foi avaliado por um laboratório central (...) o que aumenta o custo. Creio que o dinheiro foi bem investido", disse a médica em meio a uma salva de palmas.
O ensaio clínico aberto avaliou uma pergunta vexatória de longa data à comunidade cardiológica, após os ensaios clínicos COURAGE e BARI 2D terem demonstrado não haver nenhum benefício do cateterismo comparado ao melhor tratamento clínico isolado na redução da incidência de infarto agudo do miocárdio ou morte. Embora dados observacionais sugiram benefícios para a revascularização em pacientes com doença anatomicamente mais grave, o ORBITA levantou dúvidas ao descrever que o alívio da angina e a capacidade de fazer exercícios não foram melhores depois do cateterismo do que após o melhor tratamento clínico ou a simulação do cateterismo.
Foram levantadas questões: uma delas é de = que o ensaio clínico ISCHEMIA não oferece uma resposta clara após a alteração do seu desfecho primário – feita no final do estudo, porém como permitido pelo protocolo – de morte de origem cardiovascular e infarto agudo do miocárdio para incluir desfechos mais subjetivos. Além disso, os critérios de elegibilidade foram expandidos para além de, no mínimo, 10% de isquemia no teste de esforço para os pacientes, para apenas 5% de isquemia em baixos níveis de esforço (≤ 7 METS) e para os pacientes com alterações eletrocardiográficas durante o teste de esforço sem imagem.
O Dr. Kim Eagle, médico da University of Michigan nos EUA que estava entre os que levantaram questões sobre as mudanças de desenho do estudo, disse não estar surpreso com os resultados e destacou a baixíssima incidência de morte entre pacientes com doença coronariana importante. Além disso, apenas 23% dos pacientes do grupo do melhor tratamento clínico fizeram revascularização, apesar de quase um terço (28%) ter indicação de cateterismo cardíaco.
"Isso certamente nos diz que o tratamento clínico atual de que dispomos é realmente muito eficaz e vai ser difícil mostrar benefícios da revascularização em pacientes que não estão instáveis com o melhor tratamento clínico quando também podemos controlar os fatores de risco", disse o Dr. Kim ao Medscape.
"Uma das boas notícias aqui é que se trata de um ensaio clínico com resultados claramente negativos", disse Dr. Kim. "Não existem muitas tendências impressionantes indicando ser apenas devido a algumas das mudanças do ensaio clínico que precisaram ser feitas. Isso é útil".
A Dra. Alice K. Jacobs, médica da University Medical Center nos EUA, convidada a debater, disse que o ISCHEMIA teve poder estatístico suficiente, e os seus resultados não foram alterados pela modificação do desfecho primário.
"O que sabemos do ensaio clínico até hoje é que para os pacientes com cardiopatia isquêmica estável e sintomas anginosos controlados ou tolerados, não creio que sejamos obrigados a encaminhá-los diretamente para o laboratório de cateterismo", disse a Dra. Alice.
Outro debatedor, o Dr. Glenn Levine, médico do Baylor College of Medicine, nos EUA, disse que o ISCHEMIA e o estudo subordinado ISCHEMIA-CKD "ajudaram a preencher importantes lacunas de conhecimento".
"Me parece que, sem nenhuma informação privilegiada, os ensaios clínicos ISCHEMIA e ISCHEMIA-CKD serão estudos fundamentais a serem incorporadas às diretrizes", disse Dr. Glenn.
Solicitada a compartilhar o que considerava mais importante durante a discussão dos resultados, a Dra. Roxana Mehran, médica da Icahn School of Medicine at Mount Sinai, nos EUA, e membro do grupo de especialistas disse: "o que me vem à mente, em destaque, é: será que estamos fazendo muitos testes de esforço em pacientes com sintomas leves ou moderados, com um episódio de angina por mês? Essa é a grande questão. Talvez seja a mais importante descartar doença grave do coração esquerdo com uma angiografia por tomografia computadorizada (angiotomografia) e realmente entender isso".
"Isso vai mudar a nossa forma de trabalhar", acrescentou Dra. Roxana. "Isso vai mudar a forma de trabalhar porque no momento a maioria desses pacientes está aterrisando no laboratório de cateterismo e a nossa expectativa é que isso resolva o problema dele".
Em resposta, Dra. Judith disse, "Acho que ainda vamos precisar do diagnóstico por teste de esforço, mas no paciente para o qual você tem a certeza que tenha angina ou que sabidamente tenha doença coronariana; o meu único dilema é o comprometimento grave do coração esquerdo. Porque se você fizer o teste de esforço e o resultado for claramente positivo, você quer excluir isso; então você vai fazer uma angiotomografia em todos?”, questionou.
A Dra. Roxana interrompeu, "Por que não partir logo para a angiotomografia para fazer o diagnóstico?" Isso, respondeu a Dra. Judith, "se o exame estiver disponível, pode ser uma conduta razoável".
Avaliação global
Os pesquisadores do ISCHEMIA nos 320 centros em 37 países designaram aleatoriamente 5.179 pacientes estáveis com isquemia moderada ou grave pelo teste de esforço com imagem ou pelo teste de tolerância ao exercício para fazer cateterismo coronário invasivo precoce seguido de intervenção coronariana percutânea ou cirurgia de derivação coronária, se possível, junto com o melhor tratamento clínico, ou apenas o melhor tratamento clínico.
O ensaio clínico recrutou 8.518 pacientes, mas para evitar a acusação de viés de referência relacionado com estudos anteriores, a randomização foi feita após a angiotomografia com cegamento para identificar e excluir aqueles com doença grave no coração esquerdo (estenose ≥ 50%) ou sem doença coronariana (DC) obstrutiva (< 50% de estenose nas principais artérias coronárias). Por fim, 73% dos pacientes fizeram a angiotomografia, dos quais 434 foram excluídos por doença grave no coração esquerdo, 1.218 por ausência de doença coronariana obstrutiva e 1.350 por pouca isquemia.
Ao início do estudo, 87% dos pacientes tinham doença isquêmica moderada ou grave, de acordo com o diagnóstico do laboratório central, 90% com angina e 75% tinham imagens do teste de esforço como exame de qualificação.
Não houve heterogeneidade do efeito do tratamento no desfecho primário nos subgrupos pré-especificados, disse a Dra. Judith
Tabela. Resultados de cada componente |
||
|
HR ajustada |
IC de 95% |
Morte de origem cardiovascular |
0,87 |
0,16 a 1,15 |
Infarto agudo do miocárdio |
0,92 |
0,76 a 1,11 |
Hospitalização por angina instável |
0,50 |
0,27 a 0,91 |
Hospitalização por insuficiência cardíaca |
2,23 |
1,38 a 3,61 |
Reanimação após parada cardíaca |
1,01 |
0,29 a 3,49 |
Cabe ressaltar que a estratégia invasiva foi associada a aumento dos casos de infarto agudo do miocárdio tipo 4a ou 5 no procedimento em comparação ao melhor tratamento clínico (HRa = 2,98; P < 0,01), mas a uma incidência mais baixa de IAM espontâneo tipo 1, 2, 4b ou 4c (HRa = 0,67; P < 0,01).
"Vamos aprofundar a questão do infarto agudo do miocárdio espontâneo", disse a Dra. Judith. "Sabemos que o infarto agudo do miocárdio espontâneo tem maior risco de morte subsequente; o que surpreende é que as curvas de morte por todas as causas foram tão superpostas. Mas queremos estudar no ISCHEMIA Extend a divergência das curvas".
Falando ao Medscape, o Dr. Ajay Kirtane, médico do Irving Columbia University Medical Center nos EUA, comentou, "Os primeiros casos de problemas durante o procedimento invasivo foram compensados por uma redução tardia da incidência de infarto agudo do miocárdio espontâneo, o que, na realidade, levou a uma redução absoluta do principal desfecho secundário de morte de origem cardiovascular e/ou infarto agudo do miocárdio em quatro anos".
Também comentando sobre o ensaio clínico para o Medscape, o Dr. Patrick O'Gara, médico do Brigham and Women's Hospital nos EUA, disse que a isquemia é uma reminiscência do TOPCAT, cuja interpretação mudou ao longo dos anos.
"Nós, como comunidade, precisamos ter cuidado de não recuar diante da realidade de que não há uma diferença significativa de tratamento entre estes dois grupos, e somos muito rápidos a fazer isso", disse Dr. Patrick.
"Ensaios clínicos são lembrados por seus resultados positivos e temos muito a aprender com este".
Vários observadores concordaram com a necessidade de tomada de decisão compartilhada entre os pacientes e os médicos sobre os riscos e benefícios de cada estratégia e a necessidade de melhor adesão ao tratamento clínico. Embora 96% dos pacientes na última consulta estivessem tomando estatinas, apenas dois terços tomavam altas doses de estatinas, e somente 41% alcançaram um alto nível de otimização do tratamento clínico, acima de 20% desde o início do estudo, observou Dra. Judith.
"E o que é melhor do que a prática clínica?", indagou a médica.
"O grande desafio da medicina é o de levar as pessoas a tomar seus medicamentos e mudar seu estilo de vida para reduzir os fatores de risco".
O ISCHEMIA é subsidiado por um patrocínio do National Heart, Lung, and Blood Institute e por doações financeiras das empresas Arbor Pharmaceuticals e AstraZeneca. Os dispositivos e medicamentos foram fornecidos pela Abbott Vascular/St. Jude Medical, Medtronic, Volcano, Arbor Pharmaceuticals, AstraZeneca, Merck Sharp & Dohme e Omron Healthcare.
American Heart Association (AHA) Scientific Sessions 2019. Apresentado em 16 de novembro de 2019.
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Citar este artigo: ISCHEMIA: intervenção coronariana percutânea e cirurgia vs. tratamento clínico - Medscape - 17 de novembro de 2019.
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