Febre amarela: pesquisadores detectam rebote inesperado meses após o diagnóstico

Roxana Tabakman

Notificação

30 de julho de 2019

O caso de dois homens que tiveram febre amarela após uma viagem ao Brasil e apresentaram um rebote da citólise hepática dois meses após a fase aguda da doença foi reportado por médicos franceses no periódico Emerging Infectious Diseases.[1]

Os viajantes de 28 e 38 anos estiveram em Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro, desenvolveram doença leve e citólise grave, com aspartato aminotransferase (AST) > 1.200 IU/L e alanina aminotransferase (ALT) > 1.500 IU/L no momento do diagnóstico, e permaneceram astênicos por um mês, sem manifestar outros sintomas, três semanas depois as enzimas hepáticas diminuíram.

Dois meses após o diagnóstico foi detectado um aumento inesperado dos níveis de aminotransferase (> 1.000 UI/L). O relato dos casos, feito por médicos do Departamento de Doenças Tropicais e Infecciosas do Hospital Saint Louis de Paris, Université Paris Diderot, descreveu que a hepatite persistiu por mais de seis meses.

Estes pacientes chamaram atenção dos infectologistas europeus, porque é aceito que a febre amarela cursa com elevação da aminotransferase > 1.000 UI/L, podendo chegar a > 2.000 UI/L, no período inicial, mas estes valores diminuem rapidamente entre o 9º e 15º dias, alcançando os níveis superiores de referência no 16º dia, e em alguns pacientes, este aumento pode persistir por até dois meses. A recaída da inflamação hepática descrita no caso, que pode ocorrer meses depois do episódio agudo, é relativamente comum em pacientes com hepatite A, mas não havia sido observada na febre amarela.

"O que nos chamou atenção foi ver dois casos consecutivos com a mesma apresentação clínica, diferindo da apresentação descrita na literatura", respondeu ao Medscape por telefone a Dra. Blandine Denis, infectologista e primeira autora do trabalho.

"Somos um hospital universitário, então clínica e pesquisa estão muito relacionadas. Houve discussões sobre o porquê do rebote, fizemos uma investigação para tentar entender o que estava acontecendo, discutimos com outros especialistas do hospital e entramos em contato com médicos no Brasil, na África e com um especialista que atendeu febre amarela na Europa. Nenhum deles conhecia este tipo de evolução."

Conhecido, mas não publicado

O aumento dos níveis de aminotransferase meses após a fase aguda da febre amarela já havia sido observado por alguns especialistas brasileiros. O trabalho dos franceses "descreve bem o que aconteceu em dois pacientes, e colabora com o que vemos no Brasil. Eu já acompanhei mais de 40 casos, mas ainda não foram publicados", disse ao Medscape o Dr. Leonardo Soares, infectologista do HEM de Belo Horizonte, em entrevista por telefone.

O Dr. Leonardo explicou que, no Brasil, uma grande parcela dos pacientes apresenta elevação dos níveis de aminotransferase dois meses após a fase aguda da doença, que depois normaliza. O médico sugeriu que talvez isso não tenha sido percebido antes porque a maioria dos pacientes não é acompanhada regularmente. E que talvez também já tenha sido observado na África, sem que ninguém tenha publicado algo a respeito.

O Dr. Leonardo relatou que teve contato com o fenômeno do rebote após a epidemia de febre amarela que começou em Minas Gerais no final de 2016. Na ocasião, ele foi incumbido de acompanhar os pacientes no ambulatório. A orientação dada aos pacientes que haviam sido internados por febre amarela era que retornassem ao hospital para fazer exames de controle até sete dias após a alta, e eles eram orientados a voltar a buscar atendimento caso os sintomas voltassem. [2]

"Nós programamos dois retornos, e no segundo, que ocorria entre 40 e 60 dias após a alta, começamos a ver que os exames pioravam, os níveis de aminotransferase, que àquela altura já estavam caindo, às vezes podiam ter aumentado mais de 10 vezes no segundo retorno. Em alguns pacientes os níveis de aminotransferase estavam mais elevados do que os registrados durante a internação, alguns voltaram a ficar ictéricos e outros ficaram ictéricos neste momento, sem ter vivenciado isso durante a internação. Sabíamos que a função hepática pode demorar meses para melhorar, com oscilações pequenas, mas não esperávamos que pudesse piorar com um repique de 1.000 (IU/L). Isso nunca tinha sido descrito!"

O Hospital Eduardo de Menezes (HEM) da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Rede Fhemig) e outros serviços de saúde de Minas Gerais notificaram a Subsecretaria de Vigilância e Proteção à Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SUBVPS/SES-MG), informando que pacientes no período de convalescença da febre amarela (com cerca de 40 a 60 dias de evolução do quadro), vinham apresentando aumento importante dos níveis de aminotransferase (entre 500 a 1.800 mg/dL), apesar de assintomáticos na sua maioria.

"Poucos pacientes vêm apresentando icterícia associada, não houve relato de febre, mialgia ou de sangramentos. Alguns pacientes têm níveis de aminotransferase mais elevados do que quando estavam internados, e estão com 21 dias dessa alteração, começando a alterar RNI."

Essas alterações também foram percebidas, na mesma época, em pacientes no Espírito Santo, "que adoeceram no mesmo período que os em Minas Gerais, ou seja, parece que uma porcentagem dos pacientes apresenta exacerbação tardia relacionada com o momento da infecção inicial". O Dr. Leonardo referiu que o fato foi comunicado aos especialistas de São Paulo que vivenciaram a epidemia mais tarde, "e que também observaram o rebote".

De acordo com os dados, ainda não publicados, dos 300 pacientes internados por febre amarela no HEM de Belo Horizonte, em 2017 e 2018, 43 pacientes (10 de 73 internados em 2017 e 33 de 220 internados em 2018) apresentaram piora no segundo mês.

"Nós calculamos uma taxa de 15% a 16%", disse o Dr. Leonardo. O motivo do atraso na publicação, segundo ele, é que a epidemia gerou muitos dados e que outras partes da pesquisa ainda estão sendo publicadas.

"Agora estamos tentando publicar um caso no qual realizamos uma biópsia 60 dias depois da fase aguda e deu positivo para febre amarela."

Todos os pacientes do HEM que apresentaram piora foram avaliados e "readmitimos alguns, mas em muitos casos foram os próprios pacientes que solicitaram a readmissão hospitalar, por estarem apreensivos em função da alta letalidade da doença – nós fizemos a propedêutica para excluir a presença de comorbidades". Os níveis de alanina aminotransferase da maioria dos pacientes diminuíram em 120 dias, uma parte demorou mais de seis meses.

Os autores estimaram que esta evolução provavelmente resultou da resposta imune exacerbada ao vírus da febre amarela. Como 60 dias depois não há vírus viável no sangue e a imuno-histoquímica da biópsia (ainda não publicada) foi positiva para a febre amarela, o Dr. Leonardo avaliou que o quadro parece de uma reação inflamatória hepática devido ao material genético viral. Para definir a etiologia ainda são necessárias mais pesquisas.

"É uma alteração de evolução benigna, todos os nossos pacientes evoluíram bem sem nenhum tipo de tratamento", resumiu o Dr. Leonardo.

"O que este conhecimento pode mudar é o acompanhamento. Podemos evitar a readmissão do paciente, a realização de biópsias e de outros exames invasivos desnecessários."

O Dr. Leonardo Soares e a Dra. Blandine Denis informaram não ter conflitos de interesses relevantes.

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