As taxas de violência autoinfligida não-suicida estão aumentando, especialmente entre meninas adolescentes e mulheres adultas jovens. E essas pessoas poucas vezes têm amparo médico ou psicológico, segundo uma nova pesquisa.
Pesquisadores analisaram dados sobre violência autoinfligida de uma série de pesquisas com adultos de 16 a 74 anos que residiam na Inglaterra em 2000, 2007 e 2014. Eles descobriram que a prevalência de violência autoinfligida na população britânica aumentou neste intervalo de tempo, de 2,4% em 2000 para 3,8% em 2007 e 6,4% em 2014.
Embora a prevalência tenha aumentado em todos os grupos etários e sexos, o grupo mais afetado foi o de mulheres e meninas de 16 a 24 anos. Neste grupo, as taxas foram de aproximadamente 2,5% em 2000 para quase 20% em 2014.
Em 2000 e 2007, aproximadamente 51% dos participantes que praticaram violência contra si mesmos relataram não ter recebido amparo médico ou psicológico. Esse percentual subiu para 59% em 2014.
"Encontramos um aumento de quase três vezes na incidência de violência autoinfligida, tanto entre os homens como entre as mulheres, e em diferentes grupos etários, mas as taxas mais pronunciadas foram entre as mulheres jovens, onde quase um quinto relatou ter praticado violência contra si mesmo em algum momento da vida", disse ao Medscape a primeira autora, Sally McManus, do National Center for Social Research, em Londres, Reino Unido.
"Uma das coisas que queremos ver como resultado do nosso estudo é uma ênfase positiva na saúde, educação, serviços sociais e justiça penal no desenvolvimento da saúde emocional e de estratégias de enfrentamento positivas", disse Sally.
O estudo foi publicado on-line em 04 de junho no periódico Lancet Psychiatry.
Estudo de tendências transitórias
Muitos estudos têm se debruçado sobre a violência autoinfligida, o que levou ao "reconhecimento mais acurado e a programas de prevenção bem informados", escreveram os autores.
No entanto, "não está claro" se a prevalência ou a natureza da violência autoinfligida está mudando, porque "estudos de tendências transitórias são raros e suas descobertas são inconsistentes".
Para estudar a questão, os pesquisadores fizeram uma análise secundária dos dados das pesquisas sobre morbidade psiquiátrica em adultos (Adult Psychiatric Morbidity Surveys) em 2000, 2007 e 2014 em indivíduos de 16 a 74 anos (N = 7.243, 6.477 e 6.477, respectivamente).
A quantidade de dados faltantes foi "irrisória", afirmaram os pesquisadores. Na pesquisa de 2014, faltavam dados de 4,3% dos participantes que deixaram de preencher partes do relatório. A etapa de preenchimento individual foi feita em um laptop, para garantir mais privacidade, enquanto o restante da pesquisa foi feita com entrevistas presenciais, "cara a cara".
Houve um aumento global constante na prevalência de violência autoinfligida ao longo da vida de 2,4 (intervalo de confiança, IC, de 95%, de 2,0 a 2,8) em 2000 para 3,8 (IC 95%, de 3,3 a 4,3) em 2007, para 6,4 (IC 95%, de 5,8 a 7.2) em 2014.
Embora o perfil dos participantes nos três anos analisados tenha permanecido estável em termos de idade e sexo, a proporção de entrevistados brancos diminuiu. A prevalência de violência autoinfligida não diferiu significativamente entre os grupos étnicos durante nenhum dos anos.
O que permaneceu estável durante os três anos foi que a violência autoinfligida foi mais prevalente nos grupos etários mais jovens e menos prevalente nos grupos etários mais velhos.
Embora a prevalência tenha sido semelhante entre os participantes do sexo masculino e feminino em 2000 e 2007, ela foi significativamente maior entre mulheres e meninas (7,9%; IC 95%, de 6,9 a 9,0) vs. homens e meninos em 2014 (5,0%; IC 95%, de 4,0 a 6,1; P = 0,0002).
Além disso, embora a prevalência tenha aumentado em ambos os sexos e em todos os grupos etários, o aumento em termos absolutos foi maior entre mulheres e meninas: em 2014, 19,7% das mulheres de 16 a 24 anos relataram ter praticado violência contra si mesmas nas entrevistas "cara a cara" (IC 95% de 15,7 a 24,5), mais do que as 6,5% em 2000 (IC 95%, de 4,2 a 10,0) e 11,7% em 2007 (IC 95%, de 8,4 a 16,0).
A prevalência foi ainda maior quando os relatórios a serem preenchidos pelo participante foram incluídos: um quarto (25,7%) das mulheres e meninas de 16 a 24 anos relataram ter praticado violência contra si mesmas.
Meios e motivos diferentes
Em cada ano de pesquisa, cerca de dois terços dos participantes que relataram violência autoinfligida praticaram automutilação.
No entanto, à medida que a violência autoinfligida se tornou mais comum, a prevalência geral de automutilação na população de 2000 a 2014 aumentou de 1,5% (IC 95%, de 1,2 a 1,8) para 3,9% (IC 95%, de 3,5 a 4,5). O aumento da prevalência foi especialmente pronunciado entre mulheres e meninas.
Em 2000 e 2007, a prevalência de automutilação não diferiu significativamente por sexo, mas em 2014, foi maior entre mulheres e meninas do que entre homens e meninos (P < 0,0001).
Por outro lado, a prevalência de queimaduras autoinfligidas em homens e meninos aumentou ligeiramente, de 0,0% (IC 95%, de 0,0 a 0,1) em 2000 para 0,6% (IC 95%, de 0,4 a 1,1) em 2007 e 0,7% (IC 95%, de 0,4 a 1,3) em 2014.
Em ambos os sexos, a proporção da população que relatou praticar violência contra si mesmo para aliviar sentimentos desagradáveis (raiva, tensão, ansiedade ou depressão) quase triplicou em termos de prevalência de 2000 a 2014, de 1,4% (IC 95%, de 1,0 a 2,0) para 4,0% (IC 95%, de 3,2 a 5,0) entre homens e meninos e de 2,1% (IC 95%, de 1,6 a 2,7) para 6,8% (IC 95%, de 6,0 a 7,8) entre mulheres e meninas.
Em 2000 e 2007, a prevalência de violência autoinfligida como mecanismo de enfrentamento para lidar com esses sentimentos não diferiu significativamente por sexo, mas em 2014, foi significativamente maior entre mulheres e meninas do que entre homens e meninos, com a maior prevalência entre mulheres e meninas de 16 a 24 anos.
Quando os participantes que relataram violência autoinfligida no relatório preenchido individualmente em 2014 foram incluídos, quase um quarto (22,4%) das mulheres de 16 a 24 anos relataram praticar violência contra si mesmas como um mecanismo de enfrentamento.
A proporção de participantes que relataram praticar violência contra si mesmos como forma de mudar a própria situação aumentou em geral, mas de forma menos acentuada do que a proporção que praticou violência autoinfligida como mecanismo de enfrentamento, e a proporção não diferiu por sexo em nenhum dos três anos.
A proporção de pessoas que praticou violência contra si mesmo e que relatou não ter recebido atendimento médico ou psicológico subsequentes permaneceu estável de 2000 a 2007 (51,2%; IC 95%, de 42,2 a 60,0 e 51,8%; IC 95%, de 47,3 a 56,40, respectivamente), mas aumentou de maneira não significativa em 2014 (59,4%; IC 95%, de 54,7 a 63,9).
Pouca procura por ajuda
Quando os participantes de 2014 que relataram violência autoinfligida apenas na etapa de preenchimento individual do relatório foram incluídos, uma proporção maior (62,6%; IC 95%, de 58,9 a 66,1) relatou não ter tido contato com atendimento médico ou psicológico após a violência autoinfligida.
Em comparação com homens e meninos, as mulheres e meninas que praticaram violência contra si mesmas tinham praticamente o dobro de chances de buscar atendimento médico ou psicológico.
A busca por atendimento após a violência autoinfligida também foi maior entre pessoas de 35 a 74 anos, em comparação com aqueles de 16 a 34 anos.
Além disso, as chances de relatar busca por atendimento depois de praticar violência contra si mesmo aumentaram entre pessoas que também fizeram alguma tentativa de suicídio.
"Estamos cientes de que essa história pode ser amplamente divulgada, e não queremos que contribua para normalizar o comportamento de violência autoinfligida e enxergá-lo como um mecanismo de enfrentamento", disse Sally.
"Em vez disso, queremos que esses achados alertem as pessoas para buscar alternativas de enfrentamento mais positivas para lidar com seus problemas", acrescentou ela.
Ela disse que o fato de o número de pessoas que procuraram ajuda profissional ter sido baixo pode ser atribuído ao estigma.
Além disso, "a alta prevalência entre os jovens pode se dar por eles se sentirem menos capacitados/empoderados para ter acesso a esse tipo de apoio", disse ela.
Portas fechadas
Em comentários sobre o estudo para o Medscape, o Dr. Rohan Borschmann, Ph.D., psicólogo e pesquisador sênior da Melbourne School of Population and Global Health, da University of Melbourne, na Austrália, que não participou do estudo, se referiu ao trabalho como "uma contribuição muito bem-vinda à literatura".
Ele elogiou os pesquisadores por incluírem os entrevistados que não tiveram contato com os serviços de saúde mental, porque esse subgrupo é frequentemente excluído dos estudos sobre violência autoinfligida.
O Dr. Rohan, que é coautor de um comentário que acompanha o estudo, disse que a automutilação é "tipicamente um comportamento muito particular, e ainda traz consigo um estigma grande, muitas vezes é feito a portas fechadas e mantido escondido dos outros, mesmo de amigos próximos e da família".
Muitas vezes, é "apenas quando um jovem acidentalmente 'vai longe demais' que se busca por assistência médica", observou ele.
Ele enfatizou que a automutilação em jovens "é muitas vezes um marcador para outros comportamentos de risco que representam riscos consideráveis para o desenvolvimento social e emocional quando são adultos jovens ou mesmo mais velhos, e nunca deve ser considerado como apenas uma fase passageira".
Também comentando sobre o estudo para o Medscape, o Dr. E. David Klonsky, professor do Departamento de Psicologia da University of British Columbia, no Canadá, que não participou do estudo, disse que o trabalho é um "estudo bem feito por uma equipe experiente e cuidadosa".
Como o estudo distinguiu entre a violência autoinfligida e outras formas de automutilação com intenção suicida, ele é um "passo na direção certa para entender o escopo da automutilação com mais especificidade", disse ele.
Ele destacou que as taxas relatadas no estudo estão "mais ou menos alinhadas com as taxas relatadas em outros países ocidentais, como EUA e Alemanha".
No entanto, ele apontou que "exclusivamente nos EUA há uma tendência de 15 anos de aumento das taxas de suicídio".
Algumas ressalvas
O Dr. Igor Galynker, médico, professor de psiquiatria, Icahn School of Medicine, e diretor, MSBI Suicide Research Laboratory, Monte Sinai Beth Israel, em Nova York, também comentou sobre o estudo, descrevendo-o como "muito sólido metodologicamente".
Ele expressou, no entanto, algumas ressalvas.
"Meu principal problema com o estudo é que a violência autoinfligida não é fatal, e sua principal relevância nos Estados Unidos em termos de gravidade é até que ponto está relacionada com o suicídio e o comportamento suicida", disse o Dr. Igor, que não participou do estudo.
"É interessante que, na Inglaterra, embora a violência autoinfligida tenha aumentado de três a cinco vezes, o comportamento suicida não aumentou, o que é um achado surpreendente", observou ele.
Por outro lado, nos Estados Unidos, "a taxa de suicídio está subindo – não apenas as tentativas, mas também as taxas de suicídio consumado – e está aumentando especialmente entre adolescentes e em crianças menores de 15 anos", ressaltou.
"O motivo mais óbvio para este aumento é o acesso a armas de fogo nos EUA, onde 50% das pessoas que se matam usam armas de fogo, em comparação com 5% na Europa", disse ele.
"Alguém nos Estados Unidos que pode querer aliviar uma dor mental terrível pode pegar uma arma e atirar em si mesmo, mas na ausência da arma, ela pode se cortar usando a violência autoinfligida para se sentir melhor", disse ele.
Ele disse que, tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, as pessoas que praticam violência contra si mesmas não estão recebendo o amparo necessário.
"Algumas pessoas sentem vergonha e outras não querem ajuda, porque é um mecanismo de enfrentamento para elas, então elas frequentemente cortam a parte interna ou externa da coxa, onde os cortes não são visíveis", disse ele.
Além disso, as mídias sociais podem ter uma parcela de culpa pela normalização desse comportamento, especulou.
Sally disse que os médicos que trabalham com jovens devem estar cientes de que a violência autoinfligida é prevalente, e reconhecer que isso pode estar acontecendo, mas eles devem falar sobre isso de uma forma que não a normalize.
Ela encorajou os médicos a perguntarem se os pacientes praticam violência contra eles mesmos "e, quando solicitados, ter estratégias de enfrentamento positivas, alternativas, para lidar com o sofrimento".
O English Department of Health and Social Care é o principal financiador das Adult Psychiatric Morbidity Surveys, comissionadas pelo NHS Digital. As análises foram pesquisas independentes financiadas pelo National Institute for Health Research Policy Research Programme. Outras fontes de financiamento estão listadas no artigo original. Sally McManus e coautores, Dr. Rohan Borschmann e coautor, Dr. E. David Klonsky e Dr. Igor Galynker informaram não ter conflitos de interesses relevantes.
Lancet Psychiatry. Publicado on-line em 04 de junho de 2019. Texto completo, Comentário
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Citar este artigo: Incidência de violência autoinfligida aumenta na Inglaterra, especialmente entre meninas e mulheres jovens - Medscape - 25 de junho de 2019.
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