Ataque a creche coloca em questão atendimento psiquiátrico do SUS

Ruth Helena Bellinghini

Notificação

20 de outubro de 2017

O trágico episódio do ataque a uma creche em Janaúba (MG) colocou novamente em questão o atendimento psiquiátrico oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Isso porque o segurança da creche, Damião Soares dos Santos, que ateou fogo às vítimas e a si mesmo, havia passado por avaliação psicológica e encaminhado a um CAPS. Santos, que morreu no episódio e fez 50 vítimas, 11 delas fatais, acreditava que a própria mãe, de 83 anos, tentava envenená-lo e, por isso, deixou de morar com ela. O vigia jamais passou por tratamento psiquiátrico. Agora, o Ministério Público vai investigar se houve falha no atendimento ou se o ataque era inevitável.

"Quando um cardíaco sofre um infarto, ninguém pergunta ao cardiologista como foi que ele não previu que o ataque iria ocorrer, mas quando uma coisas como essa acontece, sempre se pergunta como foi que o psiquiatra não previu," cometa o psiquiatra Daniel Barros, coordenador do Núcleo de Psiquiatria Forense (Nufor) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas.

"Não há, é claro, como prever nem o momento em que um paciente vai ter um infarto, nem o momento em que um paciente psiquiátrico irá cometer um ato violento contra si ou contra terceiros. Mas faz parte da avaliação verificar os sintomas e considerar se ele oferece risco para si ou para outros", explica, salientando que a população com transtornos psiquiátricos não é mais violenta do que a população em geral.

"Na verdade, o paciente psiquiátrico corre mais risco de ser vítima de violência."

De acordo com o especialista, há poucas informações disponíveis até agora que permitam avaliar qual o papel de uma possível doença no crime. "É importante, porém, ressaltar que o paciente com quadros graves, não tratado, tem mais risco de cometer ato agressivo contra si ou contra os outros, e que o principal fator que impede o doente de buscar tratamento é o estigma que pesa sobre a doença psiquiátrica. O paciente tem medo de que sua condição seja conhecida pela família, pelos amigos, pelos colegas de trabalho, evita o tratamento e, aí sim, aumenta o risco", afirma o Dr. Barros.

O especialista reconhece o erro histórico da psiquiatria, usada como ferramenta de controle social. "Ainda existe uma demanda para que ela exerça esse papel, por exemplo, confinando pacientes indefinidamente, quando o correto é o tratamento que trabalhe a interface biológico-social de modo ambulatorial, sempre que possível", explica.

A proposta do CAPS é exatamente essa, a de oferecer tratamento ambulatorial multidisciplinar – com psiquiatra, psicólogo, enfermagem, assistente-social e terapeuta ocupacional – para pacientes com transtornos graves ou persistentes, enquanto os casos mais leves sejam acompanhados pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), com orientação dos CAPS.

"Estes últimos seriam os casos típicos de depressão e ansiedade que estão estabilizados, e que podem perfeitamente ser acompanhados por um médico generalista que tenha sido treinado e tenha a orientação do psiquiatra do CAPS," explica o Dr. Rodrigo Fonseca Martins Leite, psiquiatra e diretor do ambulatório do IPq, e coordenador de Saúde Mental do município de São Paulo.

A legislação[1] prevê diferentes modelos de CAPS, inclusive os voltados exclusivamente para atendimento de dependentes químicos, que são os CAPS-AD, e os CAPS-i, para crianças e adolescentes. A lei prevê três tipos de CAPS, dependendo do tamanho da população atendida — acima de 15 mil, 70 mil e 150 mil habitantes, sendo que neste último caso existe a possibilidade de atendimento 24 horas. Importante lembrar ainda que o paciente psiquiátrico, como qualquer outro paciente, não é obrigado a fazer tratamento.

"Da mesma forma que você não pode obrigar um sujeito com pressão alta e colesterol altíssimo a fazer tratamento, não se pode forçar o paciente psiquiátrico a tomar medicação e fazer terapia. O que se faz é recomendar e, claro, oferecer atendimento nas emergências", compara.

Na prática, segundo o Dr. Leite, toda cidade brasileira com mais de 100 mil habitantes deveria ter pelo menos um CAPS, um problema que esbarra também no fato de a esmagadora maioria dos psiquiatras estar concentrada no eixo Rio-São Paulo e nas grandes cidades. O funcionamento e a qualidade dos CAPS dependem muito do gestor local.

"A cidade de São Paulo, por exemplo, é dividida em seis coordenadorias regionais, mas o atendimento e a demanda variam muito, por causa da própria heterogeneidade da cidade, que cria uma situação bastante complexa", explica. De acordo com ele, a cidade de São Paulo tem cerca de 600 leitos psiquiátricos na rede pública, considerando aqui os leitos disponíveis em hospitais gerais e nos 20 CAPS-III da capital, que costumam ter seis leitos destinados a pacientes em crise. Neles, os pacientes podem passar a noite ou permanecer enquanto aguardam remoção para um hospital.

"Para a complexidade da cidade, infelizmente, é pouco", admite o especialista.

O Dr. Leite afirma que o ideal seria que todos os CAPS fizessem busca ativa de pacientes que, por exemplo, abandonam o tratamento. "Alguns serviços fazem exatamente isso. Se o paciente falta às consultas, deixa de retirar remédios ou algo assim, entra-se em contato com a família e até se visita o paciente para saber o que houve e como ele está. Por mais que o CAPs seja um serviço comunitário e de portas abertas, ou seja, qualquer pessoa pode entrar num CAPS para passar por avaliação e triagem, sem precisar de encaminhamento de uma UBS, por exemplo, sabemos que o paciente psiquiátrico tende a abandonar tratamento quando nota melhora ou percebe ser refratário à medicação. Daí a necessidade de as equipes assumirem um protagonismo nesses casos", afirma.

Familiares e pacientes, de acordo com ele, têm outro papel importante no funcionamento dos CAPS, que é o de encaminhar reclamações para ouvidorias e coordenadorias.

"Muitas vezes as reclamações são mais do que justas, mas se perdem porque não chegam aos canais competentes", afirma. Cabe também à família do paciente acionar os serviços de remoção em casos de emergência ou crise.

Segundo o especialista, outro problema grave é lidar com o estigma que pesa sobre o paciente psiquiátrico mesmo quando ele chega aos serviços de saúde com uma queixa clínica.

"O paciente psiquiátrico morre mais cedo do que a população em geral, principalmente de infarto e acidente vascular cerebral (AVC). Muitas vezes o clínico não quer atender o paciente psiquiátrico e o próprio psiquiatra não atende a parte clínica, quando essas duas equipes precisam trabalhar juntas."

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