MADRI — Uma epidemia letal de doença renal crônica não associada a nenhum dos fatores de risco habituais, como hipertensão arterial e diabetes, vem ceifando a vida de homens relativamente jovens que trabalham ao ar livre nas regiões quentes de todo o mundo, e alguns especialistas estão atribuindo o fenômeno ao fato de passar longas horas por dia exposto a altas temperaturas sem fazer uma reidratação adequada.
Cerca de 50 mil pessoas já morreram, segundo informou o Dr. Richard Johnson, médico do University of Colorado Hospital, em Aurora, no 54º congresso da European Renal Association and European Dialysis and Transplant Association.
Do pódio, em Madri, o Dr. Johnson questionou se "o aquecimento global e a escassez de água" podem estar contribuindo para o problema.
"Naturalmente, é possível que exista a contribuição de toxinas ambientais, mas neste momento pensamos que a doença possa ser deflagrada pela ocorrência de reiteradas lesões renais agudas", disse o pesquisador ao Medscape.
"Com o passar do tempo isso piora a função renal, e os pacientes podem então exibir os sinais clássicos de insuficiência renal com náuseas, diminuição do apetite e hipertensão arterial", explicou Dr. Johnson. "E como a diálise raramente está disponível nessas regiões, a doença pode evoluir para o óbito".
Uma das áreas mais atingidas é a América Central, onde estima-se que 20 mil pessoas que trabalham na colheita da cana-de-açúcar morreram de insuficiência renal.
Na América Central, a doença foi denominada nefropatia mesoamericana. Também é chamada de nefropatia de estresse por calor e doença renal crônica de etiologia desconhecida.
O Dr. Johnson descreveu um modelo murino de desidratação recorrente que ele e seus colaboradores elaboraram para estudar o possível mecanismo da doença (Kidney Int. 2014;86:294-302).
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Ermando de Jesus Hernandez de El Salvador, 39 anos, sofre de nefropatia de estresse por calor. O pai e o irmão dele morreram da doença. Hernandez continua a cortar cana-de-açúcar para sustentar a família, ganhando 2,26 dólares por tonelada de corte. (Tom Laffay)
Tipicamente, homens jovens apresentam aumento assintomático da creatinina sérica associado a proteinúria de baixo grau – ou não, explicou Carlos Roncal-Jimenez, MS, da University of Colorado Denver, em Aurora.
Algumas pessoas reclamam de "areia na urina" que causa disúria, mas quando se faz a urinocultura não existe infecção, relataram Roncal-Jimenez, Dr. Johnson e colaboradores, em uma revisão recente sobre o assunto (Blood Purif. 2016;41:135-138).
O mais surpreendente é que a doença não parece ser decorrente de nenhuma das causas comuns de doença renal terminal, ressaltam os pesquisadores.
Os pesquisadores avaliaram recentemente a função renal de um grupo de cerca de 300 trabalhadores agrícolas que fazem colheitas no Central Valley, na Califórnia (Occup Environ Med. 2017;74:402-409). Em um único turno, 12% dos trabalhadores avaliados tinham lesão renal aguda. Os pesquisadores identificaram como fatores de risco tanto a exposição ao calor quanto a remuneração por produção, que incentiva os trabalhadores a aumentarem o próprio esforço laboral.
A Dra. Virginia Weaver, médica da Johns Hopkins University Bloomberg School of Public Health, em Baltimore, sugere que se, caso os médicos atendam algum paciente com um episódio de lesão renal aguda de etiologia desconhecida, "vale a pena perguntar em que eles trabalham".
O Dr. Johnson disse concordar, e recomenda que os médicos orientem os pacientes a se manter hidratados, descansar, procurar ficar na sombra, e não trabalhar ao ar livre quando estiver muito quente, se possível.
"Os pacientes também precisam evitar tomar anti-inflamatórios não esteroides, como o ibuprofeno, pois isto pode agravar a lesão renal", disse ele. "E tomar refrigerantes e outras bebidas com alto teor de açúcar também não é recomendado, pois os próprios refrigerantes desidratam".
Regiões quentes no mundo


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Apenas casos confirmados (coordenar os detalhes com o Sam)
Temperaturas na camada basal na terra e nos oceanos
Sobreposição com as regiões onde ocorre doença renal crônica
"Esta doença atingiu muito mais pessoas" do que as epidemias anteriores de doença renal relacionadas com exposição ambiental, explicou a Dra. Virginia. "É um grande fator de morbidade e mortalidade nos países onde não há outras oportunidades de emprego, por isso está devastando as comunidades onde está ocorrendo".
Como o trabalho agrícola é a única opção para muitos trabalhadores em todo o mundo, as iniciativas para reduzir a incidência de nefropatia de estresse por calor devem se concentrar na detecção e na prevenção precoce.
Epidemias clinicamente semelhantes estão sendo observadas em outros lugares; cerca de 100 mil fazendeiros de plantações de arroz nas províncias do norte (as mais quentes) do Sri Lanka foram atingidos pelo comprometimento da função renal (Environ Health Prev Med. 2015;20:152-157).
O problema provavelmente ocorre há décadas, mas, segundo o Dr. Johnson, à medida que o mundo sofre aquecimento e a escassez de água se avulta ameaçadoramente, os trabalhadores que atuam ao ar livre provavelmente serão cada vez mais atingidos, a menos que sejam tomadas medidas claras para evitar isso.
O estresse por calor e a desidratação recorrente podem não ser os únicos fatores que deflagraram a epidemia de doença renal crônica nos trabalhadores ao ar livre. A epidemia também é alimentada pela exposição ambiental a nefrotoxinas, como o chumbo, o cádmio e o arsênico, disse a Dra. Virginia.
"É importante que não negligenciemos outros fatores que poderiam contribuir para esta doença, como os pesticidas ambientais, e até mesmo a qualidade da própria água, porque sua causa pode ser mais do que apenas o estresse pelo calor e a desidratação", disse a Dra. Virginia ao Medscape.
"Vemos esta doença renal crônica de etiologia desconhecida em diferentes ocupações profissionais além dos trabalhadores agrícolas, de modo que isso desafia a identificação da exposição a algum produto químico como fator de risco", acrescentou.
Planejando beber água, ficar na sombra e descansar
Jason Glaser, diretor do grupo de defesa da La Isla Foundation, trabalhou em intervenções ocupacionais que as empresas podem implementar para reduzir o risco de nefropatia de estresse pelo calor, e melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores em risco.
"Vale lembrar que o açúcar foi o foco na América Central porque é a cultura dominante nas regiões que contemplam todos os riscos identificados, mas estamos certos de ver essa doença em outras atividades nas quais as pessoas estão expostas ao estresse pelo calor, à desidratação e às potenciais toxinas", disse Glaser ao Medscape.
Em El Salvador, por exemplo, o programa de rede WE da La Isla incentiva os trabalhadores da colheita da cana-de-açúcar a adotar uma estratégia de "água, descanso e sombra" para diminuir o estresse pelo calor e o risco de desidratação.
Os trabalhadores nos campos recebem mochilas de hidratação para que possam matar a sede durante o trabalho, diminuindo o risco de desidratação e as consequências deletérias dela para os rins. Os trabalhadores também são estimulados a fazer pausas frequentes para descansar nas tendas de sombra posicionadas em torno dos campos, para que possam sair um pouco do sol.
E os especialistas criaram um facão que reduz a energia necessária para cortar a cana-de-açúcar e aumenta a produtividade. A lâmina feita sob medida também reduz as lesões comuns de esforço repetitivo sofridas pelos trabalhadores.
"Em todo o mundo, temos um longo caminho a percorrer", reconheceu Glaser, "embora existam sinais de esperança, com algumas empresas começando a estudar se a doença renal crônica está comprometendo a força de trabalho delas".
O Dr. Richard Johnson é membro do Colorado Research Partners, que está pesquisando inibidores do metabolismo da frutose, é membro do conselho científico, e tem ações da XORT Therapeutics. A Dra. Virginia Weaver, Carlos Roncal-Jimenez e o Sr. Jason Glaser informaram não possuir conflitos de interesses relevantes ao tema.
European Renal Association-European Dialysis and Transplant Association (ERA-EDTA) 54th Congress. Apresentado em 5 de junho de 2017.
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Citar este artigo: Surto de mortes por insuficiência renal atribuído à exposição ao calor - Medscape - 18 de agosto de 2017.
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