A mais recente tentativa de intervenção na região da Cracolândia, na capital paulista, reacendeu o debate sobre políticas de atendimento aos usuários de crack – ou ausência delas – e trouxe de novo à baila o debate incendiário sobre as chamadas internações compulsórias, que dividem a opinião da população em geral. Nesta entrevista ao Medscape, o psiquiatra Dr. Daniel Martins de Barros, coordenador do Núcleo de Psiquiatria Forense do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), discute o tema e avisa que a população da Cracolândia é bastante heterogênea e inclui desde moradores de rua até usuários eventuais da droga, passando por aqueles que já perderam totalmente o controle, mas que estes são minoria. De acordo com ele, projeções indicam que a cidade tem algo em torno de 50 mil usuários de crack, incluindo pessoas que moram com a família, estudam e trabalham.
Medscape: Como se definem legalmente as diferentes formas de internação?
Dr. Daniel Martins de Barros: Nós temos a internação voluntária, em que o paciente percebe que precisa de tratamento, se interna e assina um documento. Existe também a internação involuntária, em que a única diferença é que o paciente não assina o documento por algum motivo, está em coma, em surto psicótico, treme demais ou por realmente se opor à internação. Originalmente, a internação compulsória surgiu por medida de segurança no terreno criminal. A pessoa cometia um crime, o perito avaliava como incapaz e o juiz determinava sua internação numa instituição psiquiátrica. Ela é chamada compulsória porque é determinada por um juiz, seguindo uma recomendação médica. É a esse expediente que se recorre quando um dependente químico está em tal condição que sua vida corre risco iminente ou ele põe em risco a vida outra pessoa ou ainda se encontra num surto psicótico e é incapaz de decidir.
Medscape – Foi essa a proposta feita em São Paulo? A de internação compulsória?
Dr. Barros – Não exatamente. Após a intervenção da polícia, a proposta do prefeito João Doria era que a população da Cracolândia fosse levada pela polícia para uma avaliação médica forçada, ou seja, um intervenção pré-médica que, claro, foi derrubada na Justiça. Internação compulsória em massa não pode ser encarada como uma política de saúde para o caso das drogas, embora na região da Cracolândia existam pessoas que perderam totalmente sua autonomia, não têm condições de decidir e se encaixam no perfil que necessita de intervenção compulsória. Mas, mais uma vez, esta tem de ser uma decisão exclusivamente médica, endossada pela Justiça.
Medscape – O senhor está dizendo, então, que a população da Cracolândia não é homogênea, ou uma turba de zumbis, como diz a população leiga.
Dr. Barros – Tem de tudo na Cracolândia. Gente que perdeu toda autonomia, gente que vai ali de noite, fuma e no dia seguinte está no trabalho ou na escola porque sua perda de controle é apenas parcial, moradores de rua, o que você imaginar. E, é importante notar, as pessoas que perderam totalmente o controle por causa da droga são a minoria.
Medscape – Isso significa que a maioria dos dependentes de crack não estão nessa região?
Dr. Barros Filho – A Cracolândia é a apenas a ponta do iceberg e talvez sua face mais aguda. Uma pesquisa do Ministério da Saúde de 2013 estimava em 370 mil o número de usuários de crack apenas nas capitais brasileiras, e sabemos que seu uso vem se alastrando no interior, inclusive entre idosos e trabalhadores rurais. Desses, mais de 100 mil se concentravam nas capitais do Sudeste e isso significa que, no mínimo, existem 50 mil usuários de crack na capital paulista, dos quais apenas 800 estão na Cracolândia. Quer dizer que 98% dos usuários de crack estão em casa com suas famílias, estudando e trabalhando.
Medscape – Essas pessoas vão ter sua dependência agravada e acabar na Cracolândia também?
Dr. Barros – Não necessariamente. Elas têm uma perda parcial de controle, que se reflete no fato de não conseguir ficar sem a droga. Ao longo da vida, provavelmente vão passar por algumas internações de 15 ou 30 dias, que é o período usual, voltar para casa e tentar retardar o máximo possível uma recaída. Vão cair e se levantar várias vezes e seguir em frente. Algumas vão eventualmente conseguir deixar a droga, outras vão continuar numa série de internações e outras ainda, uma minoria, vão chegar naquele ponto em que perdem totalmente o controle, mas temos como prever quais seguirão qual caminho.
Medscape – A internação e tratamento são eficazes?
Dr. Barros – As taxas de recaídas são muito altas, mas isso não significa um fracasso. É assim mesmo, as internações são breves, a pessoa tem alta, precisa continuar se tratando e, principalmente, o paciente e sua família precisam saber que as recaídas fazem parte do processo e que, quando você cai, precisa se levantar e recomeçar. Isso vale não só para o crack, como para qualquer dependência química.
Medscape – Há diferença nos resultados de internações voluntárias e compulsórias?
Dr. Barros – Não. Os resultados são os mesmos. Vamos deixar claro que considero a internação compulsória ética, humana, juridicamente legal e tecnicamente correta nos casos extremos que mencionei. Ela é também uma forma de tratar a tuberculose, desnutrição, aids, sífilis, hepatites e alcoolismo que atingem essa população. Mas a internação não basta. É preciso haver uma estrutura mais ampla com casas de acolhimento, atendimento ambulatorial, hospitais-dia e serviço social para que essas intervenções tenham maior chance de sucesso no longo prazo.
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Citar este artigo: "A Cracolândia é apenas a ponta do iceberg", diz psiquiatra forense - Medscape - 8 de junho de 2017.
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