Cerveja e vinho no Brasil não são considerados bebidas alcoólicas desde 1996, para fins de publicidade e propaganda, o que significa dizer que peças publicitárias sobre estas substâncias são atualmente reguladas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e não mais pela Constituição Federal. Esta situação, similar em alguns outros países, foi definida pelo Congresso Nacional, contrariando o que teria determinado a Constituição de 1988. A estratégia deu ao Conar o direito de regular as inserções publicitárias nas mídias: bebidas com grau alcoólico abaixo de 13 graus Gay Lussac, o equivalente a 13% por volume, foram consideradas, para estes fins, não alcoólicas, caso da cerveja e do vinho.
De acordo com Alan Vendrame, professor visitante da University of Connecticut School of Medicine e pós-doutor pesquisador no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esta estratégia, que ele descreve em artigo aceito para publicação na revista Addiction, é nociva a adolescentes, contribui para o aumento da iniciação e do uso abusivo do álcool por esta faixa etária e deveria ser revista imediatamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mais grave: segundo o pesquisador, a indústria de cerveja gera 3,8 bilhões de dólares em impostos para os cofres do Estado, que, por sua vez, gasta mais de 93 bilhões de dólares com as consequências do uso do álcool.
Vendrame, que é advogado, professor de direito e pós-doutor em Medicina e Saúde Pública, cita estes dados a partir de um estudo de caso investigado em bases bibliográficas. Segundo ele, o objetivo foi avaliar o grau de interferência da indústria da bebida na formulação das políticas públicas com relação a consumo, uso e abuso de álcool, secundárias às estratégias de marketing desenvolvidas por ela. Na revisão bibliográfica, ele identificou, em síntese, que: o uso de álcool aumentou no Brasil entre adolescentes e mulheres; o consumo é diretamente proporcional ao volume de publicidade a que estes grupos são submetidos; e a autorregulação pelos órgãos independentes da Lei , tais como o Conar, rompe com os objetivos éticos que estes apregoam, tanto n Brasil, quanto em outros países. Por fim: medidas jurídicas levadas a cabo pela Procuradoria da República que tentaram retomar esta regulação para o âmbito legal foram infrutíferas e derrotadas, segundo o autor, pelos lobbies das companhias de bebidas levados a cabo no Congresso Nacional.
"As regras e restrições no Código do Conar – assim como em outros países que adotam este sistema – seriam derivadas de dois princípios: proteger crianças e adolescentes pela proibição do marketing direto a estes públicos e proibir o marketing que induz consumo abusivo e irresponsável de álcool", explica Vendrame no texto, argumentando que seu levantamento bibliográfico constata justamente o contrário: "anúncios de cerveja frequentemente carreiam mensagem que encoraja o consumo excessivo de álcool e há evidências de que as mensagens são direcionadas para crianças e adolescentes". Aliado a isso, para o pesquisador, e esta é a conclusão final do artigo, o controle que a indústria do álcool tem conseguido manter via Conar sobre sua publicidade faz com que ela participe efetivamente das formulações de políticas públicas para a prevenção do alcoolismo no país.
Ele explica que, segundo seus achados, no Brasil, o consumo de álcool tem crescido entre adolescentes e mulheres desde 2004. Além disso, embora o país congregue um grande número de abstinentes, estes são continuamente encorajados pela publicidade do álcool a se iniciarem no uso da substância. "Os dados mais recentes do 2º Levantamento Nacional de álcool e Drogas (LENAD) revelam que entre 2006 e 2012 a proporção de mulheres jovens que experimentaram álcool antes dos 12 anos de idade aumentou de 1% para 4%; entre 12 e 14 anos, de 7% para 13% e de 28% para 32% entre 14 e 17 anos", afirma o pesquisador no texto.
Além disso, diz Vendrame, neste mesmo período, aumentou significativamente o percentual de mulheres que consomem cinco ou mais drinques por vez e daquelas que bebem pelo menos uma vez por semana (de 27% em 2006 para 38% em 2012), o que aponta, caso sejam consultados dados do universo masculino, "que a diferença entre o consumo de álcool entre homens e mulheres tem diminuído progressivamente".
Finalmente, escreve o autor, "estima-se que o país gaste 7,3% de seu PIB por ano em problemas relacionados ao uso do álcool, do tratamento médico à perda da produtividade no trabalho, somando aproximadamente US$93 bilhões". E ele acrescenta: "nos últimos quatro anos, o SUS (Sistema Único de Saúde) teve 313 mil internações hospitalares causadas pelo alcoolismo, com um custo anual de US$249 milhões."
"Vinte por cento do tratamento em geral no país é devido ao abuso de álcool e 50% do tratamento psiquiátrico tem ligação com o transtorno", conclui.
Alain Vendrame declarou não possuir nenhum conflito de interesses relevante ao tema.
Addiction 18 de Maio de 2016 doi: 10.1111/add.13441
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Citar este artigo: Indústria do álcool participa das políticas públicas para o atendimento ao alcoolismo e seus agravos, diz pesquisa - Medscape - 9 de setembro de 2016.
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