O treinamento semanal com a tecnologia de interface cérebro-máquina (Brain Machine Interface, BMI), pode, eventualmente, voltar a ativar os nervos da medula espinhal lesados por um trauma que levou à paralisia de membros inferiores – mesmo em pacientes paralisados há mais de uma década, sugere uma nova pesquisa.
O programa de reabilitação neurológica com BMI em múltiplos estágios utilizou realidade virtual, revestimentos com tecnologia de toque, andadores robóticos e um "exoesqueleto robótico controlado pelo cérebro" personalizado.

Dr. Miguel A.L. Nicolelis
Embora o estudo tenha sido pequeno, com apenas oito pacientes, os pesquisadores afirmam que os resultados foram muito importantes. Todos os oito tiveram melhoria parcial na localização da dor e no tato epicrítico e protopático após 12 meses de treinamento. Eles também recuperaram o controle muscular voluntário em áreas abaixo do nível da lesão medular, levando a um melhor índice de marcha.
Além disso, metade dos pacientes passou de um diagnóstico de paralisia completa à paralisia incompleta.
Um dos resultados mais dramáticos envolveu uma mulher que tinha paralisia há 13 anos. Após um ano de treinamento, ela conseguiu "caminhar" usando órteses e um sistema de suporte de peso corporal. No início do treinamento, a paciente não conseguia sequer ficar de pé com as órteses.
"Observar esses pacientes tem sido a experiência mais emocionante da minha carreira, e eu estou na ciência há 33 anos", disse o pesquisador principal o neurologista brasileiro Dr. Miguel Nicolelis, professor de neurobiologia na Duke University, em Durham, Carolina do Norte, e codiretor do Duke Center for Neuroengineering, ao Medscape.
O estudo foi publicado online em 11 de agosto em Scientific Reports.
O Dr. Nicolelis observou que os resultados foram uma surpresa maravilhosa para toda a equipe.
"Ninguém esperava que fossemos conseguir o que observamos: a recuperação neurológica parcial de funções viscerais, sensitivas e motoras", disse ele em um comunicado à imprensa. "Até o momento, ninguém havia visto a recuperação dessas funções em um paciente tantos anos após ser diagnosticado com paralisia completa".
Registrando e interpretando sinais neuronais
Sistemas de interface cérebro-máquina conectam a comunicação cerebral com computadores e até próteses. Descobrir como registrar sinais neuronais, extrair os comandos motores a partir deles e, em seguida, gerar o movimento tem sido algo com que o Dr. Nicolelis vem trabalhado há quase 20 anos.
Em 1999, ele publicou um artigo mostrando que ratos com microeletrodos implantados do cérebro poderiam aprender a controlar uma alavanca robótica para dispensar água usando apenas a atividade cerebral.
Mais pesquisas que usaram um sistema de realidade virtual com primatas para controlar movimentos tridimensionais de um avatar e de membros robóticos, juntamente com um estudo de registro da atividade cerebral em humanos publicado em 2004, levaram a uma melhor compreensão de "como o cérebro codifica o movimento", disse o Dr. Nicolelis.

Cortesia de AASDAP São Paulo, Brasil
"Ainda assim, nenhum estudo em animais ou em humanos indicou que o treinamento com interface cérebro-máquina poderia induzir qualquer tipo de recuperação clínica", escrevem os pesquisadores.
O presente estudo faz parte do projeto Walk Again, de São Paulo, Brasil, que colabora com 100 cientistas em 25 países dedicados a ajudar as pessoas com várias condições, incluindo lesão da medula espinhal, a recuperar a mobilidade.
Os oito pacientes, todos com lesão medular há mais de um ano, foram inscritos em um centro em São Paulo em 2014. Eles começaram com duas horas por semana de treinamento com interface cérebro-máquina e foram equipados com um tipo de capuz revestido com 11 eletrodos não-invasivos para registrar a atividade cerebral com o uso de eletroencefalografia (EEG).
Inicialmente sentados, os pacientes aprenderam a operar avatares de si mesmos em um ambiente de realidade virtual imersiva usando a atividade cerebral. Outra parte do processo usou equipamentos para andar com suporte de peso, com uma espécie de armadura suspensa.
Outros sistemas de treinamento incluíram exoesqueletos nos membros inferiores e um revestimento de feedback tátil. Esses revestimentos usam diferentes vibrações de forma que os pacientes teriam uma sensação quando, por exemplo, o avatar andasse na areia e outra sensação quando andasse na grama.
"O feedback tátil é sincronizado e o cérebro do paciente cria uma sensação de que ele mesmo está andando, sem a assistência de dispositivos", disse o Dr. Nicolelis.
Todos apresentaram melhorias
Após um ano de treinamento, 100% dos pacientes "apresentaram melhorias neurológicas na sensação somática... em múltiplos dermátomos", relatam os pesquisadores.
"Análises de EEG revelaram sinais claros de plasticidade funcional cortical, nas áreas somatossensorial primária e motora cortical, durante o mesmo período", acrescentam.
Quatro dos pacientes melhoraram sua classificação na Escala de Incapacidade da American Spinal Injury Association (ASIA) ao longo de 12 meses. Três foram de uma classificação ASIA A para C, e um de uma classificação B para C.
Além disso, todos os oito pacientes mostraram melhorias na função gastrointestinal e condição geral da pele. O pico da função intestinal foi atingido com três meses, com a frequência correlacionando-se com o maior tempo de pé ou andando.
Melhorias nas percepções tátil, vibratória e nociceptiva se iniciaram aos sete meses, atingindo seus picos aos 10 meses. A percepção de temperatura não melhorou, embora os pesquisadores observem que isso pode ter ocorrido devido à ausência de especificidade nesta medida.
"Estes resultados sugerem, pela primeira vez, que a exposição a longo prazo a protocolos de interface cérebro-máquina enriquecido com feedback tátil e combinado com treinamento de marcha robótica podem induzir à plasticidade cortical e subcortical capaz de desencadear recuperação neurológica parcial", resumem os pesquisadores.
Eles acrescentam que isso mostra que "as aplicações da interface cérebro-máquina devem passar de apenas um novo tipo de tecnologia de assistência para ajudar pacientes a recuperar a mobilidade... a uma potencial nova terapia de reabilitação neurológica".
Reativando nervos espinhais
O Dr. Nicolelis observou que pesquisas anteriores sugeriram que pacientes diagnosticados com paralisia completa ainda poderiam ter alguns nervos espinhais íntegros. Eles apenas "foram silenciados" após não serem usados por anos. Mas a interface cérebro-máquina poderia despertá-los.
"Não importa o quão pequeno seja o número de nervos que sobrevivem ao trauma original, você pode ser capaz de reacendê-los o suficiente para enviar uma mensagem do cérebro para a medula espinhal".
Ele relatou que os pacientes ainda estão sendo acompanhados e que um novo artigo descreverá os benefícios após 28 meses de treinamento.
"As pessoas podem pensar que um ano ou dois anos de treinamento é muito, porque elas pensam com os seus próprios valores. Mas, para uma pessoa com diagnóstico de paralisia completa, este período de tempo é aceitável", ele disse.
Além disso, ele disse estar conduzindo outro estudo que vai comparar pacientes com lesão da medula espinhal antiga com aqueles com lesões mais recentes para avaliar se os efeitos dos métodos de interface cérebro-máquina são maiores no segundo grupo. Até o momento, 16 pacientes foram recrutados, e é esperado que um número "significativamente maior" seja acrescentado.
O estudo foi financiado por doações da agência brasileira Financiadora de Estudos e Projetos; do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação brasileiro; e do Itaú Unibanco SA. Os autores do estudo declararam não possuir conflitos de interesses relevantes.
Sci Rep. Publicado online em 11 de agosto de 2016. Artigo
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Citar este artigo: Interface cérebro-máquina reconecta nervos da medula espinhal em pacientes com paralisia - Medscape - 22 de agosto de 2016.
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